Nacional

O legado de Espinosa

Voz Portucalense
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O recente livro de A. Damásio, “Ao Encontro de Espinosaâ€, discute a explicação tradicional de que o sentimento precede a emoção; e defende: os pensamentos desencadeiam as emoções e as simultâneas modificações corporais transformam-se no que chamamos sentimentos. Aquelas, pois, “alinhadas com o corpo enquanto os sentimentos estão alinhados com a menteâ€. No discurso de Damásio isto altera a nossa visão do problema mente-corpo e abre um panorama novo sobre o corpo e sobre a mente. Que valor prático? O mesmo Autor o diz: “O êxito ou o fracasso da humanidade depende em grande parte do modo como o público e as instituições que governam a vida pública puderem incorporar essa nova perspectiva da natureza humana em princípios, métodos e leisâ€. “Compreender os sentimentos, a forma como funcionam e o seu significado humano, isso diz até respeito ao modo como os seres humanos poderão abordar os conflitos latentes entre interpretações sagradas ou seculares da sua própria existência. O paralelismo psicofísico e a sua extrapolação para um paralelismo individual-social, assim interpretados, equivalem e apenas repetem a interrogação antiga: são as ideias que regem o nosso comportamento ou é a “neurologia do sentir†que nos determina na conduta individual e relacional? Em última análise, é, pois, o religioso que está em questão no livro de António Damásio como o estava nos livros de Espinosa, Ética – demonstrada à maneira dos geómetras - e Tratado Teológico-político. Quanto a Espinosa, o seu sistema é uma doutrina filosófica de salvação da alma por meio duma explicação racional do mundo. Essa problemática religiosa, naturalmente ligada à problemática ético-afectiva (i. é, das afecções, da alegria e da tristeza que condicionam a conduta humana), trouxe-lhe amargos de boca. Perguntaram-lhe se o mundo é o corpo de Deus, se os anjos são alucinações, se a alma é a mesma coisa que a vida, se a Bíblia nada diz sobre a imortalidade. As respostas traíram-no, e então os judeus excomungaram-no, os cristãos condenaram-no, as autoridades proibiram-lhe os livros, a família abandonou-o, a irmã empalmou-lhe a herança. É que, por mais geométrico que seja o método expositivo que adoptou para eliminar contradições, Espinosa não escapa a uma contraditória concepção panteista-determinista: tudo deriva de Deus visto que Deus está em tudo. Como conciliar isto com a liberdade que Espinosa postula de a alma poder subir ao conhecimento intuitivo de Deus e realizar a aspiração de imortalidade (impessoal)? Liberdade ou determinismo? Melhor se diria que esta ascese mais depende do acto voluntário livre do que do carácter apodíctico de qualquer corolário geométrico. Quanto a Damásio, não quer “neurologizar†Deus, mas considera que as experiências espirituais, religiosas ou não, são processos mentais e, por isso, biológicos ao mais alto nível de complexidade; não ficam, assim “biologizadosâ€, diminuídos na sua dignidade nem se reduzem a pura mecânica (como parece suceder em Espinosa); apenas, segundo Damásio, a sublimidade do espiritual está incorporada na sublimidade da biologia. Em todo o caso, o que não parece razoável – por mais sedutor que seja à primeira vista – é “analisar as acções e os apetites do homem como se se tratasse de um problema de linhas, de planos e de sólidosâ€. Isso pode conhecer-se, mas a verdade tem de ser, além de conhecida, sobretudo amada. O próprio do homem é ser inexprimível, irredutível a conceitos. Ernesto Campos, in Voz Portucalense


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