A Igreja ausculta de modo mais intenso nesta semana o seu próprio mistério de ícone da Trindade no meio do mundo. Ao longo destes dias ela reflecte o mistério do seu mistério enquanto criatura vocacionada pelo seu Senhor e Esposo ao qual invoca permanentemente para a Ele aceder e para que a Ele advenha (cf. Ap 22,17). O significado etimológico da sua condição evoca isso mesmo, a voz que a sustém. Nesta condição ela é passiva, vocacionada, é precedida por um amor outro. Logo é convocada, é chamada no meio de muitas vozes e com pelo menos Três vozes. Esta convocação abre a Igreja à descoberta da evocação de si mesma, daquilo que lhe falta. Esta falta é o que busca, e porque falta sacia. Este é o mistério do sagrado. Revê-se como amada e de novo chamada ao melhor de si mesma. Esta é a condição do protótipo do fiel, do filho que é o nosso antepassado Abraão. É desafiado a ir para si mesmo, a “lek leká” (vai para ti mesmo: Gen 12,1). Abraão é o primeiro a acreditar como deve ser. Coloca-se na situação de filho. Por isso, ele é o primeiro dos filhos de Deus dando início a uma grande história onde muitos outros entrarão. Depois da torre de Babel na construção de tijolos (11,3) que erguem muros e individualizam (isto é, isolam), o patriarca de Ur dá início à história do(s) estrangeiro(s), daquele(s) que tudo recebe(m) e faz(em) pontes dando à vida uma dimensão sacra.
Deste modo, a Igreja, à semelhança de Abraão, encontra a sua experiência originária e contínua – a da filiação divina. É uma experiência de fé, como não podia deixar de ser. Assim nasce a vocação sacerdotal, numa experiência de fé. Nela reconhece com a Igreja que é provocada a fazer silêncio, a ir “para si mesmo”. A provocação indica que existe uma voz à frente e em favor dela que a voca. Neste quadro, a Semana dos Seminários é uma experiência de fé para a Igreja. Ela invoca dentro de si mesma a fé que a anima. Assim a fortifica.
Nos nossos Seminários convocamos experiências de fé ao sacerdócio, mas não de forma voluntarista. É uma experiência fontal e final na medida em que liga à profissão da matriz identitária que distingue os discípulos de Jesus, e ao mesmo tempo evoca um sentido numa esperança religando ao futuro. O quadro da provocação sacerdotal é o quadro da fé. Reconhece a convocação fontal que abre à provocação final. Assim cresce a invocação entre a esperança e a memória. A vocação ao sacerdócio à maneira presbiteral então evoca um mistério outro. Não é um convite à função sacerdotal, pois a Igreja não é redutível a um conjunto de funções, nem a uma hierarquia de autoridades, como infelizmente foi tempo. É muito mais do que isso, muito mais rico e muito mais pertinente mesmo para a cultura contemporânea. A vocação sacerdotal que a Igreja inteira invoca e acarinha é antes de mais uma experiência de fé, o mesmo é dizer, a experiência da construção de uma relação ao mistério de si mesma que acaba por acrescentar o ser de Deus ao mundo e à Igreja. Deste modo, sempre inacabada. A experiência de fé da Igreja é experiência de fé da voz para o sacerdócio. Não se compreende uma sem a outra. Como experiência de fé acredita no que traz e crê o que ensina e leva ao mundo. Faz fé na evocação da voz originária e na fidelidade da mesma.
Esta evocação é uma experiência para o mundo na humanidade do crente. A figura sacerdotal torna-se aí sinal de uma provocação outra que convoca o mundo à civilização do amor peregrinando para outra terra. No fundo, invoca no meio do mundo a reedenização da existência dilacerada pela via da sua reabraamização. Assim se reconstroem as gerações de Javé (cf. Gen 2,4). A figura presbiteral prefigura então para si, para o mundo e para a Igreja a abertura à graça configurando-se ao mistério. Não é, por isso, nem um funcionário nem um gestor. É um invocante. Nesta condição essencial pode evocar para si e para os outros o dom que recebeu e recebe permanentemente – a graça, termo tão esquecido na reflexão teológica contemporânea. A figura presbiteral convoca então o homem à humanidade salva. Deste modo continua a receber a graça de ver acontecer a salvação ao mundo. O presbítero, etimologicamente o mais velho, dá figura a essa graça com a força da sua juventude e na maturidade da vida adulta. Tradicional e socialmente ainda visto como pai, o padre é figura do mistério, mistério que pode acontecer porque vivido. Universaliza o seu amor até que o coração fique do tamanho do mundo. Nele todos podem evocar e invocar esse mistério que ele traz como tesouro em vasos de barro (cf. 2 Cor 4,7). A isto chamamos paternidade, sempre muito mais do que biológica, é amante pois pulveriza a desfiguração do eclesiástico. Nesta doação de si passa a paternidade de Deus e a maternidade da Igreja. Poder viver a vida assim, nesta gratuidade permanente. Isto é uma graça. Esta é a beleza da vida à maneira dos mais crescidos na fé, dos presbíteros, ser pai e mãe para os outros e para o mundo. O encanto de uma vida assim continua a fascinar. Não pode deixar de o conseguir. Apesar da crítica mordaz da modernidade e do olhar de soslaio de alguma mentalidade serôdia de carácter mesquinho com um horizonte intelectual soez, não obstante a crítica cerrada dos mestres da suspeita à figura paterna, ela continua a configurar a figura presbiteral. À imagem de Jesus, o sacerdote por antonomásia, feliz nessa condição, o presbítero vive a graça de dar e de receber a vida. Jesus, o Filho dos filhos, precisamente porque recebe e dá a vida aos seus, é pai e mãe. Esta é a graça do prolongamento do dom. Por isso, nunca vive sozinho. O mundo e a Igreja são a sua casa. Qualquer homem faz a experiência de estar só, mas aquele que foi chamado ao sacerdócio tem a graça da companhia de Deus garantida no dom indelével e irreversível do selo da ordenação e prolongada na seara do mundo. Como qualquer mãe e qualquer pai (dos bons) cria vida e gera relações. Não fica à espera angustiado que outros venham recolher os frutos, mas é-lhe dada a graça da colheita como ao salmista (cf. Sl 126,1).
Fazer a experiência de uma vida livre, liberta, é outra graça que o Senhor concede aos que são provocados para viver a vida nesta missão sacerdotal de paternidade e de maternidade. Livres para amar e ser amados, amantes e amadores, pois não são profissionais. Libertos de preocupações menores, têm a oportunidade, a graça de viver a vida com qualidade de acordo com a medida alta de Jesus. Ser chamado a isto é um privilégio. Ter a coragem de, pelo menos, perguntar porquê é um acto de honestidade intelectual. Não é uma provocação desumana. Antes, absolutamente humana e humanizante. Projecta, provoca a condição humana ao melhor de si mesma, a ir para si mesma. Vocação grande, vocação nobre, vocação santa. Felizes os convidados.
Nestes dias olhamos para a encarnação da maternidade e da paternidade num dos seus momentos prefiguradores mais lídimos que é o da vocação sacerdotal. Invocamos ao Senhor muitas e boas encarnações do nosso Deus agraciante, vocações gratas.
José Carlos Carvalho, professor UCP