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O presépio barroco português

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Afirmação pletórica dos conceitos artísticos de unia época (século XVII-XVIII), os presépios barrocos eram orientados a emocionar as que com eles passavam a “conviver” numa contemplação festiva. Eles deviam alimentar o êxtase, proporcionar o arrebatamento do sentido da vista mediante a plasticidade das figuras, a assimetria dos espaços, a profusão das cenas, o cromatismo dos diversos elementos.

Os mestres da arte barroca não buscavam a beleza em si, para se recrearem com ela, mas sobretudo tinham como objectivo impressionar a imaginação e o coração das pessoas que na plateia conventual ou familiar se movimentavam. Estas, como espectadoras activas e interpeladas existencialmente, deveriam sentir a mensagem. De acordo com esta ideia, o presépio tornava-se um momento vital, um sermão estentórico, um apelo moral, mediante a representação de cenas da história e da vida, e para além delas.

Visto como movimento artístico, o Barroco, na sua expressão plástica, chegou um pouco tardiamente a Portugal, atingindo o seu apogeu no reinado de D. João V. Para isso contribuíram, por um lado, as vantajosas condições económicas proporcionadas pelas riquezas vindas do Brasil e, por outro, o dinamismo inspirado pela Reforma Tridentina. Depois do Concílio de Trento (século XVI), os católicos procuraram impulsionar o dinamismo das expressões artísticas com a intenção de impressionar as massas populares, reagindo contra um movimento iconoclasta, impulsionado pelos protestantes e caracterizado pela austeridade e despojamento ornamental com reflexos na arte e no culto.

Com a profusão de elementos da natureza, com a redundância ornamental, a opulência das diversas obras de arte, o Barroco colocava-se ao serviço da exaltação do mistério e do sentimento religioso das pessoas. As poderosas realizações da arte barroca, elevando até alturas insuspeitadas o apelo dos grandes místicos, são devedoras de uma profunda e sentida religiosidade, de uma mundividência onde a exaltação de Deus, com os anjos e os santos, é uma constante.

Os presépios barrocos entram neste dinamismo. A natureza toda projecta-se nos presépios, como se projectou nas obras de talha no interior das igrejas. A apoteose da beleza, num dinamismo teândrico de excepção, orientava-se segundo a convicção de que a Deus pertence toda a natureza no melhor das suas expressões. Com a extraordinária dimensão teatral de um evento religioso único, eles ostentam uma coincidência feliz entre o sentimento do artista e as inquietações do seu tempo. O poder e a eficácia expressiva dos presépios são reforçados por essa confluência de sentimentos, e pela “cópia” das figuras e das situações elevadas a sublime idealização. Daqui o fascínio que exercem.

E não se pode calar a admiração pelos artistas, muitas vezes anónimos, que souberam imprimir e exprimir, com tão frágil material, sentimentos tão nobres. Imortalizaram-se não só pelo seu valor artístico, mas também pela cultura bíblica condensada em cenas de beleza superior.

O respeito pela sua memória não se pode separar do respeito pelo património artístico que nos legaram.

Diante do presépio, “teatro do mundo” a unir Céu e Terra, abrem-se os nossos olhos para admirar cor e expressão das figurinhas de barro, e abrem-se os corações para contemplar a apoteose de um Deus feito menino.

Composição alegórica, e ordenada, o presépio remete o espírito para a cronologia das cenas graciosas, implantadas em cenários fantásticos, onde palpita um movimento entre um passado digno de memória e um presente cheio de interpelação existencial.

Enquanto memória e apelo, o presépio representa e “reactualiza” o evento do “Verbo feito carne” confiado ao carinho de uma mãe e de um pai, despertando nobres sentimentos no coração do homem simples.

A maravilha desta Natividade não está só naquilo que os olhos vêem, mas na explosão de um hino à Vida. Portador de uma mensagem de alegria e de paz, o nascimento de Jesus convida a olhar para além da graciosidade das figuras, implantando na humanidade as sementes de um mundo novo.

Na representação presepial de Jesus Menino, o artista, grande ou pequeno, desperta o menino que existe em cada um de nós, aberto aos sinais da beleza, da inocência, da alegria messiânica. «Glória nos Céus, paz na Terra...»

Unindo-se ao jubiloso coro dos amigos, na gruta de Belém, erguem-se as vozes de todas as idades, raças e condições sociais, irmanadas no canto universal de louvor e gratidão.

Foi um olhar português a imprimir a forma do génio artístico que nos é dado contemplar nos presépios seleccionados deste livro, alguns dos quais se encontram em fase de cuidado restauro. Por razões diversas, estes são apenas oito, todos eles na área de Lisboa: Basílica da Estreia; Igreja de São José entre Hortas; Madre de Deus (Museu Nacional do Azulejo); Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA); Palácio Nacional de Queluz; Patriarcado de Lisboa; Sé de Lisboa.

São muitos mais os núcleos presepistas do período barroco, espalhados por outras igrejas e museus do País, grande parte dos quais se encontra a norte do Tejo. Por entre todos emerge o Museu Nacional de Arte Antiga, onde, além dos exemplares expostos, e de outros cedidos para instituições públicas, se podem ver numerosas peças de presépios desmontados, conservadas nas reservas. Na capital são de referir ainda os seguintes: Igreja de São Vicente de Fora (no MNAA); Capela de Nossa Senhora do Monte; Igreja da Madalena; Basílica de Nossa Senhora dos Mártires; Museu Nacional cio Traje; Museu Nacional de Arqueologia.
No Porto encontram-se presépios barrocos na Igreja da Lapa, na Casa-Museu Fernando de Castro e na Casa-Museu Guerra Junqueiro. Em Coimbra são igualmente três os presépios dignos de menção: Museu Machado de Castro; Igreja de Santa Cruz, Capela de Santo António dos Olivais.

Este itinerário leva-nos a descobrir presépios barrocos um pouco por todo o País: em Braga, Museu da Catedral; no Bussaco, Igreja do Convento dos Carmelitas Descalços; em Aveiro, Museu de Aveiro; em Lamego, Santuário de Nossa Senhora dos Remédios; na Lapa (Sernancelhe), Igreja do Santuário de Nossa Senhora da Lapa; no Mosteiro (Castro Daire), Capela do Presépio; em Viseu, Museu de Arte Sacra e de Etnologia em Alpiarça, Casa dos Patudos; em Estremoz, Igreja da Misericórdia ou das Maltezas; em Portalegre, Associação de Presepistas.

A lista dos presépios alarga-se com os exemplares que se encontram em casas de família, muitos dos quais são conhecidos por terem estado presentes em alguma exposição. Ao contrário dos presépios monumentais referidos neste livro, as graciosas maquinetas e as figuras avulsas nas mãos de particulares constituem um património difícil de avaliar e de ser apreciado pelo público. Muitos deles são atribuídos à escola de Machado de Castro, o maior presepista nacional. Mas, além deste e dos outros grandes mestres desta época, é justo não ignorar os mestres populares que, à volta de Mafra, Alcobaça, Aveiro e Barcelos, construíram figuras com ingénua simplicidade e extraordinário realismo.

Dos presépios perdidos, mutilados ou destruídos fica-nos o amargor de uma recordação triste. A voragem do tempo, a incúria dos homens ou o estertor da raiva iconoclasta privaram-nos do encanto e da beleza que nos é dado usufruir ainda hoje nos casos remanescentes.

A encerrar o quadro artístico, resta-nos descobrir que as raízes da representação do presépio remontam ao evento religioso de que fala o texto de Lucas - um escritor cristão do século I - como algo de radicalmente novo na história da humanidade. Daqui parte tudo!

«Quando ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz, e Maria teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.
Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tiveram grande medo. O anjo disse-lhes “Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.” E de repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus, dizendo: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens que ele ama...”
(Os pastores) foram apressadamente, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura.» (Lucas 2, 6-14.16)

Arnaldo Pinto Cardoso in “O presépio barroco português”, ed. Bertrand, FMR



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