Aqueles intermináveis minutos de aplausos, no final das exéquias de João Paulo II, cadenciados com os gritos da imensa multidão que clamava “Santo, subito!” (“Santo, já”) terá surpreendido os próprios cardeais, a começar pelo cardeal Ratzinger, que aliás não hesitara em concluir a sua homilia invocando a bênção celeste do Papa defunto: “Dê-nos a sua bênção, Santo Padre, da janela da casa do Pai!”. Que este clamor não era de todo espontâneo, bem o revelavam os cartazes com letras garrafais invocando a imediata canonização, desdobrados naquela circunstância final, na Praça de São Pedro, bem visíveis para os muitos milhões de telespectadores dos quatro cantos da terra. Mais espontânea e não menos surpreendente tinha sido a afluência de dois milhões de fiéis, nos dias que precederam o funeral, suportando o frio e o calor, de dia e de noite, ao longo de cinco, dez ou mesmo 20 horas de espera, para prestar homenagem ao féretro papal.
A questão de uma eventual proclamação imediata da santidade de João Paulo II foi abordada, sábado passado, pelos cardeais reunidos em congregação geral, por proposta de um dos purpurados. O cardeal Ratzinger, decano do Colégio Cardinalício, que preside estes encontros preparatórios do conclave terá solicitado D. José Saraiva Martins, como titular que era da Congregação da Causa dos Santos, a recordar a actual disciplina da Igreja neste campo. O que este fez, lembrando naturalmente o que todos muito bem sabem: desde há muito que foi abandonada a aclamação popular, pelo que só o próximo Papa poderá eventualmente tomar a decisão de prescindir dos cinco anos previstos para a abertura do processo de beatificação.
João Paulo II tomou uma decisão desse tipo em relação à Irmã Teresa de Calcutá, em 1999, dois anos após a morte da conhecida religiosa, reconhecendo a sua “fama de santidade”. No que diz respeito à hipótese de um reconhecimento de santidade “por aclamação” (ainda que fosse do conjunto dos bispos da Igreja universal), recorda-se que em 1965 Paulo VI recusou uma petição formulada por 150 Padres conciliares que solicitavam a beatificação, nessa modalidade, do Papa João XXIII. Não obstante ninguém pusesse em dúvida, desde o momento da sua morte (1963) a santidade do “Papa bom”, só trinta e cinco anos mais tarde (ano 2000) teve lugar a sua beatificação.
No que diz respeito a João Paulo II, ninguém põe em dúvida as “virtudes heróicas” por ele reveladas na vida e na morte. Se é esse o sentir comum dos fiéis, por maioria de razão o é da parte dos cardeais que se preparam para eleger o novo Papa. Mas não falta quem recorde a oportunidade de seguir a tradicional moderação da Igreja, dando tempo ao tempo e evitando agir de modo emotivo ou sob pressão das multidões. Na conferência de imprensa de sábado passado, o porta-voz Navarro Valls confirmou que a questão foi levantada no encontro dos cardeais, que convieram em que “qualquer decisão a esse propósito é da exclusiva competência do novo Pontífice”. Há quem pense que o sucessor de João Paulo II não deve ficar desde já grandemente condicionado sobre a decisão a tomar sobre uma questão deste tipo, que tanto apaixona a opinião pública da Igreja e não só. É por isso que alguns cardeais, mesmo dos mais afeiçoados ao Papa Wojtyla e que mais reconhecem a exemplaridade da sua vida, se recusaram a subscrever uma petição proposta pelos purpurados mais entusiastas de um João Paulo II “santo, já”.
In Voz Portucalense