Nacional

Quarenta anos depois... onde estamos?

Fernando Soares
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Uma reflexão sobre o Ecumenismo

Com a promulgação do Decreto Unitatis Redintegratio – Decreto sobre o Ecumenismo, do Concílio do Vaticano II, há 40 anos, a Igreja Católica Romana iniciou a sua abertura às outras Igrejas. Desde essa altura até hoje muito foi alcançado no contexto ecuménico português, embora muito ainda esteja por conseguir-se. Eis um testemunho e um balanço possível, na perspectiva de uma Igreja histórica minoritária, preocupada com a sua afirmação e com uma profunda vocação comunitária, que tem vivido a caminhada ecuménica com intensidade, alegria e muita esperança. Toda a minha vivência como clérigo, desde há mais de 30 anos, se banhou no espírito da unidade, qual rio que une as margens com água corrente que tonifica e mostra o caminho da foz, o mar imenso da Igreja Una Santa Católica e Apostólica, que o Credo de Niceia afirma. Retenho, por isso, na memória o que foi o balbuciar do movimento ecuménico nesta Diocese do Porto, sob o olhar emblemático, distante mas atento, de D. António Ferreira Gomes. Lembro os diversos encontros formais com teólogos e historiadores, em amplos auditórios, as primeiras celebrações litúrgicas na Igreja da Lapa, e os encontros informais, de pequenos grupos, em casas particulares, onde se lia e reflectia a Palavra de Deus, procurando a luz para iluminar o caminho comum na fé. As celebrações ecuménicas Nos princípios dos anos 70, mesmo perante a incompreensão de alguns, as celebrações ecuménicas por altura da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, organizadas pela Comissão Ecuménica do Porto, eram já uma realidade vivida com alegria e forte impacto por fiéis de diversas Paróquias Católicas e Igrejas de outras confissões. Assim se foi caminhando, ao longo dos anos, como peregrinação com ponto de encontro na Semana de 18 a 25 de Janeiro de cada ano, o que por vezes foi objecto de lamento e crítica – porque as coisas não andavam..., porque o ecumenismo só se realizava na Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos, porque... E alguns chegaram a desistir... porque isto não levava a nada. Hoje percebemos quanto aqueles tempos de aproximação prudente, de estudo cuidadoso, de relação cerimoniosa, foram importantes para chegarmos àquilo que actualmente o Espírito nos permite viver, a aceitação mútua na caridade de filhos de Deus e a relação fraterna em respeito e abertura centrados na pessoa de Jesus. A nível nacional não se pode esquecer aquele dia 20 de Fevereiro de 1992, em Viseu, em que se realizou o I Encontro Ecuménico entre a Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e o Conselho Português de Igrejas Cristãs, sob a Presidência de D. António Monteiro, então Bispo de Viseu e Presidente daquela Comissão Episcopal. Assim a caminhada ecuménica chegou ao patamar mais alto da hierarquia Católica Romana e passou ser entendida como assunto de importância prioritária na sua missão. Doze anos passados nesta relação de caminheiros – vamos já no XXV Encontro – os Encontros Ecuménicos têm sido instrumentos de partilha de conhecimento e aprofundamento das perspectivas de cada Igreja participante, levando-as a descobrir-se umas às outras em ambiência de humildade, de respeito e aceitação mútuas, de reflexão e oração fundadas na Palavra de Deus e na pessoa de Jesus Cristo. A Carta Ecuménica para a Europa Esta ambiência permitiu que em Novembro de 2001 se traduzisse e publicasse a Charta Oecumenica para a Europa, firmada em Strasbourg, em Abril desse ano, entre os Presidentes da Conferência das Igrejas Europeias (Igrejas não Romanas) e do Conselho das Conferências Episcopais Europeias (Católica Romana). Nessa Charta, as Igrejas Europeias assumiram a responsabilidade de procurar anunciar juntas o Evangelho, ir ao encontro do outro na promoção da abertura ecuménica e na colaboração no campo da educação cristã e na formação teológica inicial e permanente, orar juntos e prosseguir o diálogo com vista a chegar-se a um consenso de fé. Tais compromissos são caminhos de vida, cuja exigência só é possível enfrentar tendo Cristo como fundamento. Neste sentido, está a preparar-se uma declaração pública de aceitação mútua do Baptismo das Igrejas participantes daqueles Encontros Ecuménicos, que se espera venha a verificar-se este ano de 2005. Ainda, em Outubro de 1994, aos participantes dos Encontros Ecuménicos juntou-se a Aliança Evangélica Portuguesa, noutro modelo de Encontro a que se deu o nome de Interconfessional. Deste último há que realçar duas importantes Jornadas levadas a cabo, a primeira em Coimbra, 2001 – “A singularidade de Cristo†– e a segunda no Porto, 2004 – “Jesus Cristo, a Palavra Vivaâ€. Foram eventos de reflexão sobre a pessoa de Jesus à luz da diversidade das leituras da Palavra de Deus das Igrejas envolvidas, espaços de encontro para os seus fiéis, vivência conjunta da mesma preocupação do anúncio hoje de Jesus como Senhor e Salvador. Da separação aos caminhos de encontro Desta forma se tem vindo a avançar numa involvência de entusiasmo nem sempre efusivo, mas sempre autêntico, porque alimentado pela convicção de que a caminhada ecuménica é uma acção do Espírito, de que a Unidade dos Cristãos deve também ser vista na perspectiva escatológica. Como Jacob (Gén. 28,10-17), no seu sonho, podemos abrir os olhos do nosso entendimento e descobrir que Deus tem estado “neste lugarâ€. A imagem da escada que liga o céu à terra, por onde os anjos subiam e desciam, com Deus no cimo, pode identificar-se com o Movimento Ecuménico nos seus avanços e recuos. O santuário do Espírito onde a unidade se vive, não se alcança somente pelo que os homens e as mulheres das Igrejas possam fazer, mas, e principalmente, pelo modo como se deixarem transformar por esse mesmo Espírito. Ao invés do que muitos pensam, o movimento ecuménico não decorre dum simples processo de aceitação ou rejeição de algumas posições eclesiais ou mesmo da simples mudança de usos e tradições. O seu desenvolvimento está fundamentalmente na transformação dos corações, na mudança estrutural das mentes relativamente à aceitação do outro e da diferença. Séculos de desentendimento e de separação, por vezes violenta, não se apagam da mente humana em meras quatro dezenas de anos; poder e autoridade eclesiais não se desligam facilmente das estruturas dominantes do Estado (seja católico ou protestante), o uso da tradição e das tradições em favor da manutenção do “status quo†não se desvanece por magia. Não se conseguiu o reconhecimento dos ministérios, não chegamos à mesa comum? No entanto, após quarenta anos de vivência ecuménica, podemos olhar-nos uns aos outros na alegria, na pertença ao mesmo Deus e a uma mesma fé em Jesus Cristo, como Senhor e Salvador. Aceitamo-nos na fraternidade da Igreja de Cristo que cada uma das nossas confissões vai vivenciando no contexto da história e da sensibilidade espiritual que as moldou. E aí percebemos a grandeza e a profundidade da graça de Deus, tendo-nos trazido de tempos azedos, de antagonismos e apologias, transformado as nossas concupiscências eclesiais em atitudes de aceitação, de acolhimento e de vivência fraterna. Escola de paciência e esperança Aceitar o desígnio divino da Unidade dos Cristãos é tomarmos consciência de que participamos num projecto que não depende de nós, mas do qual somos instrumentos. Assim, a caminhada ecuménica é escola de paciência e de esperança, passando as suas frustrações a ser entendidas como uma participação na Cruz de Cristo. O Ecumenismo tem de aceitar-se como uma peregrinação em que as dificuldades do caminho não inibem ou desencorajam o peregrino, pois, o fim desejado por Jesus em momento tão crucial da Sua vida - a unidade dos seus seguidores – é parte da missão da Igreja e justifica todas as agruras da viagem. Ora, esta convicção, esta paciência fundada numa esperança e numa fé inabaláveis, esta capacidade de aceitar e conviver com as dificuldades são contributos indispensáveis e essenciais para a melhor compreensão entre os homens através da consciência do outro, na busca de uma ética de relacionamento na diferença, e na realização de acções comuns. Assim o mundo vê e começa a acreditar que as Igrejas envolvidas no Ecumenismo estão ao lado da humanidade nas suas grandes preocupações pela construção da justiça e da paz. Então, só temos de continuar, continuar a disponibilizarmo-nos para esta caminhada, porque, sendo Jesus o único fundamento da Igreja (I Cor. 3,1-23), há-de ser o Seu Espírito vivendo em nós que nos fará perceber todo o sentido da unidade que pediu ao Pai. * Bispo da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (Comunhão Anglicana)


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