Nacional

Quarenta minutos com a Irmã Lúcia

António Rego
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Foi a 13 de Abril de 2000, um mês antes do aniversário da primeira aparição de Fátima, da beatificação de Jacinta e Francisco, e da terceira peregrinação de João Paulo II a Fátima. Fui informado que nesse dia o Bispo de Leiria - Fátima, D. Serafim Ferreira e Silva, iria anunciar oficialmente à Irmã Lúcia a vinda de João Paulo II, e convidá-la a estar presente na Cova da Iria no momento da beatificação de seus primos. Tive o privilégio de poder acompanhar este encontro, após a concessão de todas as licenças quer de Roma quer da Diocese, quer da Madre Prioresa do Carmelo. Já tinha filmado a Cartuxa em Évora, a Trappa em França, o Carmelo no Porto. Já entrevistei Madre Teresa de Calcutá e o próprio Papa, num avião. Mas naquele dia chuvoso e triste, na Eucaristia matinal tinha pedido a Deus disposição interior para uma viagem de ida e volta ao Carmelo de Coimbra sem uma única imagem ou palavra da Irmã Lúcia. Tudo era possível: o tempo disponível, a sequência do diálogo, o cansaço, a percepção e o respeito profundo pelos noventa e três anos da Irmã Lúcia. Era muito fácil não acontecer nada. E estava em jogo um documento para a história de Fátima, inédito e irrepetível. No primeiro encontro com o Bispo de Leiria-Fátima tentámos acertar as sequências. Tratar-se-ia de uma visita breve, que certamente não ultrapassaria cinco ou dez minutos. D. Serafim fez o favor de me ajudar no transporte do material. Um grupo de peregrinos italianos que passava no exterior do Carmelo admirou-se de ver um bispo de batina e faixa com uma câmara de vídeo ao ombro. Por minha parte transportei os tripés e projectores. Assim cruzámos a porta do convento. Pouco faltava para as 16 horas. Eu deveria entrar primeiro no locutório para os preparativos. Tudo ao contrário: a Irmã Lúcia entrou antes de nós e logo começou o diálogo. Nem houve tempo para acertar luzes, cores ou microfones. As grades estreitas dificultavam a visão. Estavam presentes o Bispo de Leiria, a Madre Prioresa, a médica de Lúcia e eu próprio, a notar que tudo estava estragado do ponto de vista de reportagem, pois de luzes havia apenas duas tímidas lâmpadas fluorescentes. D. Serafim iniciou o diálogo num tom familiar e próximo. Entretanto pedi à doutora Branca Paúl - assim se chama a médica da Lúcia - para segurar o pequeno projector de luz, lateralmente, a fim de não ferir a vista da irmã Lúcia, nem lhe deixar no rosto as sombras das grades. Com a luz certa, comecei a perceber, através da câmara, que o seu rosto era bonito, muito mais bonito que nas fotos convencionais, e o seu olhar perspicaz mesmo por detrás de duas grossas lentes. O Bispo de Leiria Fátima abriu, quase com solenidade: "Venho anunciar-lhe oficialmente que o Papa virá a Fátima, e no dia 13 de Maio vai beatificar os pastorinhos...". Irmã Lúcia interrompe, bem humorada: "não me vai beatificar a mim!!!". Sorriu larga e inteligentemente. Estava quebrado o tom protocolar do primeiro momento. D. Serafim explicou os horários, os pormenores, o encontro da Irmã Lúcia com o Papa, na Basílica, programado para a manhã do dia 13. Lúcia foi muito directa: "Gostava de estar a sós com o Santo Padre. Não que tenha nada de especial para lhe dizer, mas gostava de estar apenas com ele, longe da multidão. Será possível não haver gente na Basílica nessa altura? " Foi-lhe assegurado que se prepararia um espaço reservado para o encontro com o Papa. A irmã Lúcia tem um espírito selectivo muito apurado. Com algumas dificuldades de audição responde ao que lhe parece realmente importante, com uma extraordinária perspicácia. De tudo o que disse apenas se manifesta amedrontada com as multidões. Conta que, mesmo para as consultas médicas externas, tem de escolher uma ocasião em que não haja outros doentes, se não as pessoas agarram-se a ela, enchem-na de beijos, "homens com bigodes e tudo, de tal forma que a primeira coisa que faço ao chegar a casa é lavar a cara". Uma vez iam-lhe partindo um braço. E sabe o que passou com multidões quando esteve seis horas no meio do trânsito e de muito povo, entre o Carmelo de Fátima e o Santuário. Logo a seguir sorriu: o Papa beijou-lhe uma vez o véu preto que lhe cobria a cabeça. Guardou-o com muito carinho. Pena que de momento se não lembre onde se encontra esse véu. D. Serafim recorda que ensinou uma expressão portuguesa ao Papa: "Bem haja. É um obrigado do coração". E acrescentou: "Diga isso ao Santo Padre que ele vai gostar de ouvir". Outras histórias decorrem pelo meio: Lúcia confirma que Francisco não chegou a aprender a ler nem escrever, apesar de ter frequentado a escola até ficar doente. "Ele estava convencido que iria morrer brevemente e terá pensado que não valia a pena". E acrescentou: "O professor também não era dos melhores. Por ser doente de um braço só ensinava a ler, não a escrever". Fala dos encontros alegres com os sobrinhos e recorda uma sobrinhita que julgava que a Tia ia levar um homem preto ao colo. "Eu tinha-lhes falado em protocolo". E ela perguntou-me: "como o leva ao colo se ele é muito pesado?" D. Serafim recorda um dos grandes defensores de Fátima nos anos vinte, o Dr. Formigão. E pergunta o que pensa a Irmã Lúcia sobre a abertura do processo de beatificação. Lúcia responde com firmeza: "Não o conheci suficientemente. Uma coisa é encontrarmo-nos como numa visita, outra é o que as pessoas são por dentro no dia a dia. Não contactei com ele de forma a poder emitir um juízo dessa ordem". De permeio, referências à importância da obediência. O bispo de Leiria recorda S. Agostinho: quem obedece nunca se engana. Lúcia corrobora, por inteiro, como quem diz: "nunca fiz outra coisa na vida e não estou arrependida". Como que repentinamente, Lúcia fala da outra vida: "Espero que seja melhor que esta". "Será infinitamente melhor", acrescenta a Madre Prioresa. Depois de o pequeno grupo com ela rezar a Avé Maria e de receber a bênção do Bispo de Fátima, Lúcia recorda: "O senhor Reitor do Santuário perguntou-me se eu quereria dizer algumas palavras a propósito da beatificação do Francisco e da Jacinta . Tenho uma coisa a dizer". Do hábito tira um papel e lê: "A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador." Passaram quarenta minutos. Quarenta minutos de imagens, cada uma das quais vale mais que mil palavras. Fiquei a pensar: há aqui um segredo que já vem no Evangelho. É pela porta da simplicidade que Deus se revela. Percebi melhor por que a Virgem Maria apareceu a três crianças. António Rego


Pastorinhos de Fátima