No dia 12 de Junho realizou-se a cerimónia da entrega de uma relíquia do pregador dominicano S. Telmo, que viveu entre os séc. XII e XIII e se tornou o patrono dos marinheiros, e assim é referido nos Lusíadas de Camões, conforme recordou o Bispo do Porto na sua homilia.
Foi por acordo entre as autoridades eclesiásticas e civis da cidade de Tui, em cuja catedral se encontra o corpo do santo, que uma sua relíquia foi tresladada, em relicário com a imagem do santo, conduzida pelo pároco, António Pacheco Gonçalves, para a Igreja do Corpo Santo de Massarelos, que também o escolheu como padroeiro. Junto ao cais do Douro, local de acostamento de navios, a Igreja de Massarelos data na sua forma actual do século XVIII (1776), mas ouras ermidas mais modestas ali se situaram antes, estando o espaço também ligado ao Infante D. Henrique (recordado no painel de azulejos na parte da igreja voltada para o rio Douro). Esta tresladação resoltou de um entendimento entre a Confraria de Massarelos, a Junta de Freguesia, a Catedral e a Confraia de S. Telmo de Tui, o Bispado e o Cabido Portucalense e as Câmaras do Porto e de Vigo.
Na homilia que proferiu, D. Armindo Lopes Coelho registou e enquadrou os factos históricos e o sentido da devoção popular:
S. Pedro González Telmo (nós dizemos S. Pedro Gonçalves Telmo), nasceu em Frómista (Palência) (outros dizem em Astorga) pelo ano 1190. Terá falecido em 1243 (ou 1246). Sobrinho de um bispo, foi muito novo nomeado cónego, e chegou a deão. Certo acidente daquela vida jovem e despreocupada provocou-lhe uma mudança profunda. Fez-se dominicano, passando a ocupar o tempo na pregação e no ministério da confissão. Também participou em campanhas contra os mouros, ao lado do rei, mas a sua vocação e preocupação religiosa fê-lo passar por Compostela, Lugo, Ribadávia, Amarante (Cf. Tradição de S. Gonçalo) e principalmente Tuy, onde morreu.A esta actividade de pregador está ligado o milagre que se lhe atribui. Estando a pregar, em Bayona, enfrenta uma tempestade que perturba o ambiente. Como Cristo, segundo os Evangelhos, Pedro González imperou ao vento e aos outros elementos. E voltou a tranquilidade e a bonança. É o padroeiro dos marinheiros e mareantes.
Pela mesma época, este centro cultural e cultual de Massarelos, dedicado a Nossa Senhora da Boa Viagem, dependia da Colegiada de Cedofeita, até se tornar freguesia autónoma.
O século XII, nesta área do Porto, estava organizado socialmente à base de corporações (de artes e ofícios) e de confrarias. Tendo começado as respectivas histórias em proximidade e paralelismo, foram-se depois separando, reservando-se as confrarias para o bem das almas.
Segundo documentação transcrita em arquivo, no ano de 1394 um galeão com o nome de S. Pedro dirigia-se de Londres para o Porto, comandado pelo Capitão António Espírito Santo Silva, sendo gajeiro Inácio de Sousa, com uma tripulação de mais vinte e sete homens,. Tendo chegado ao mar da Viscaya foram surpreendidos por um violento temporal que fez correr perigo a vida de todos os passageiros. Invocaram S. Telmo, e logo a sua imagem apareceu no topo dos mastros com três faróis acesos. A tempestade acalmou, seguiram viagem e aportaram em Vigo. No dia seguinte dirigiram-se a Tuy agradecer a S. Telmo junto do seu túmulo. E prometeram erguer uma ermida na sua terra, aqui, onde chegaram em 20 de Dezembro de 1394.
Foi na ermida de S. Pedro Telmo, anterior a esta igreja do Corpo Santo de Massarelos, que teve origem, em 1394, a Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. Nasceu de um voto religioso e estava ligada ao ofício de marinheiro, sob a protecção de S. Telmo, padroeiro dos marinheiros.
No mesmo ano de 1394 nasceu e foi baptizado no Porto o Infante D. Henrique, o Navegador. Sendo uma confraria de irmãos, dedicada ao bem das almas a à ajuda dos necessitados, esta Confraria teve a preocupação e a dita de atrair irmãos qualificados. O Infante D. Henrique foi juiz honorário da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. Foi irmão da Confraria D. Lopo de Almeida, cujo nome ficou para sempre ligado à institucionalização dos cuidados de saúde, através do Hospital de Santo António.
O nosso poeta Camões transporta-nos à visão trágica dos mares em revolta para nos tornar presentes os milagres e a protecção de S. Temo:
“Vi, claramente visto, o lume vivo
que a marítima gente tem por santo,
em tempo de tormenta e vento esquivo,
de tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
milagre, e cousa, certo, de algo espanto,
ver as nuvens, do mar com largo cano,
sorver as altas águas do Oceano.” (Canto V, 18)
Evocada a história e lembrados os elos de ligação entre Tuy e Massarelos, pela analogia do milagre e pela protecção de S. Telmo, que de algum modo faz comum a história marítima e a fé dos marinheiro das nossas pátrias, agradecemos a S. Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Tuy-Vigo e a toda a Comitiva presidida pelo senhor Bispo Emérito de Tuy-Vigo a mercê que nos fazem de nos doar e trazer uma relíquia de S. Pedro Telmo, a fim de podermos deste modo refazer a relação que aqui foi lembrada.
Foi também uma oportunidade para evocar a história, a tradição, autêntica ou legendária, que envolve a figura de S. Pedro Gonçalves Telmo. Devo confessar que não estou angustiado por não conhecer toda a verdade ou realidade da riquíssima simbologia que sugerem a tradição, a literatura, hagiográfica ou não, e as próprias artes plásticas. Tem especial significado a tríplice luz dos faróis como afirmação da Trindade de Deus em tempo da crise albigense. Como permanece o mistério do “fogo de santelmo”, referido na tradição, na hagiografia e, em termos textuais, nas definições dos dicionários normais: “Pequena chama, devida à electricidade atmosférica, que aparece ocasionalmente na extremidade dos mastros e das vergas dos navios ou nos filamentos dos cabos”; ou “lume vivo” (Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fogo-de-santelmo).
A natureza no complexo das criaturas e dos fenómenos, as tradições e os símbolos, os sentimentos e todos os constituintes da beleza coexistem com a fé na profundidade do mistério e na amizade dos povos que têm consciência de serem uma única família.
É este o sentido do nosso testemunho comum, hoje.