Nacional

Responder à Sida em Igreja

Lígia Silveira
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«Projecto sorriso» que ser presença católica ao lado dos seropositivos na Costa de Caparica

Década de 90. A Sida (Síndroma de Imunodeficiência Adquirida) adquiria em Portugal e a nível internacional toda a sua visibilidade. O país acordava para uma doença silenciosa e percebia que não tinha resposta para ajudar as vítimas seropositivas. A Costa de Caparica é uma localidade do concelho de Almada, na periferia da cidade de Lisboa. Uma localidade piscatória banhada pelo mar em toda a sua extensão. Por ser um local de periferia, o fenómeno da toxicodependência tornou-se muito forte e consequência disso, o fenómeno da Sida vitimou muitas pessoas. Na altura os tratamentos estavam ainda na sua “primeira fase e as consequências na saúde das pessoas eram complicadas, remetendo-as para situações frágeis, sem meios socio-económicos para sobreviverem e, por isso, o fenómeno da pobreza era base comum das pessoas que nos procuravam”, recorda o Pe. António Pires, pároco em Nossa Senhora da Conceição, na Costa de Caparica, diocese de Setúbal. Foi para responder às necessidades dos seropositivos que o Centro Social e Paroquial Nossa Senhora do Carmo, na Costa de Caparica, criou o Projecto Sorriso. O Centro data de 1989 com as habituais valências para crianças e idosos. Em 1996 propôs-se lançar uma valência “atípica” e acompanhar os seropositivos da Costa de Caparica, da Trafaria e do restante concelho de Almada, juntando-se assim à Caritas diocesana de Setúbal e à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Resposta humana O projecto Sorriso funciona em plena Costa de Caparica “de porta aberta. Somos discretos porque as pessoas têm direito à sua privacidade, mas nunca deixamos de fazer actividades. Todos sabem que a instituição trabalha com seropositivos e nunca tivemos nenhuma manifestação”. O Pe. António frisa que “estamos a falar de pessoas e por isso é preciso bom senso”. Com 12 anos a instituição acompanhou 800 casos de seropositivos. Em aberto continuam cerca de 450, mas “num mês passam cerca de 250 casos por nós”, explica Carla Dias, Directora do Centro Social e Paroquial Nossa Senhora da Conceição. São apenas números que escondem rostos e dramas humanos. “Números que são pessoas e é com pessoas que trabalhamos”, frisa o Pe. António Pires. Carla Dias aponta que não é preciso uma pessoa dirigir-se pessoalmente ao Centro para obter ajuda. “Basta que seja sinalizada que nós entramos em acção”. Uma prática que se estende a todas as valências do Centro Social e Paroquial. A directora explica que, em especial com os seropositivos, “nem sempre são eles a pedir ajuda, porque quando aqui chegam o seu estado está já muito avançado”. O sacerdote acrescenta que o Projecto Sorriso “é o fim da linha”, ou seja, significa que todas as outras respostas já se esgotaram. Uma equipa multidisciplinar de 10 pessoas com psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, ajudantes de acção directa, entre outros é a resposta aos pedidos. O projecto decorre na sede do Centro Social e Paroquial mas também noutro local, no centro da vila, completamente inserido na lógica urbana. O pároco explica que esta foi uma opção de “espaço mas também para que as pessoas que frequentam o Centro não sejam automaticamente catalogadas”. Na vila, existe um centro de dia, um espaço para higiene, de alimentação e para algumas actividades. Em 2008 os pedidos de ajuda dobraram, comparativamente a 2007. “E pessoas novas”, acrescenta Carla Dias, “na faixa dos 20, 30 anos, muitas já em fase de Sida, o que significa que foram infectadas na adolescência, entre os 15 e 20 anos”. Após a infecção com o vírus da Sida há uma etapa chamada de «período janela» onde o vírus é replicado internamente no organismo e pode ser transmitido, mas não é detectado. Pode viver-se com o vírus sem se dar conta, a chamada fase asintomática. O período janela varia de caso para caso, mas pode rondar os cinco anos. Quando um caso é sinalizado o primeiro passo é fazer uma avaliação global da pessoa porque a intervenção é “holística”, explica Carla Dias. “Não se olha apenas para um aspecto, mas para todo o contexto e todas as dimensões humanas”. Accionam-se todas as parcerias para responder às necessidades – saúde, emprego, direitos jurídicos, habitação, ou seja, “todas as que qualquer pessoa precisa para viver diariamente”. Os utentes do projecto Sorriso são maioritariamente provenientes da toxicodependência, e por isso, “geralmente as suas famílias têm grandes dificuldades”. Há por isso, uma resposta simultânea ao contexto familiar. Muitos dos agregados familiares estão privados de qualquer rendimento, “com idosos a cargo, ou com mais pessoas doentes, estando em situação de pobreza. É preciso responder também do ponto de vista económico, criando meios para que tenham uma alimentação cuidada, uma casa com condições essenciais”, explica o Pe. António Pires. Em 1996 as parcerias foram rapidamente estabelecidas “pois vivíamos todos - Segurança Social, saúde, Igreja - voltados para o mesmo. Percebia-se que era uma questão de saúde pública”, daí a conjugação de factores, recorda o sacerdote. As parcerias continuam tal como foram estabelecidas nos anos 90. “Os problemas é que mudaram”. Continua a existir a necessidade de acompanhamento nas medicações, mas “as pessoas têm agora 10 ou 15 anos de vida à sua frente”, um quadro que precisa de uma resposta diferente de há 10 anos atrás. Doença crónica: novos desafios Com a medicação a esperança de vida aumentou “e muito”. Os altos índices de mortalidade causados no início do reconhecimento da doença, não existem mais em Portugal. Esta realidade põe a descoberto a falta de respostas e a necessário inclusão social das pessoas. O Centro Social e Paroquial está a dar passos para criar uma rede com o Centro de Emprego e com algumas empresas para promover a reintegração das pessoas no mercado de trabalho através do emprego protegido. Mas as empresas “não estão organizadas para ter alguém, economicamente não produtivo”, explica Carla Dias. É certo que a pessoa tem de fazer o seu plano de saúde e por isso terá alguns dias ou parte do dia que não poderá trabalhar, “mas haverá outros que sim, e não são aproveitados”. A directora do Centro lamenta que as empresas não tenham esta lógica, pois a “integração é parte da cura”. O número de pessoas dependentes também aumentou. A doença deixou consequências e são precisas respostas ao nível do centro de dia e apoio domiciliário. O Centro Social a Paroquial estuda a viabilidade de iniciar uma unidade de cuidados paliativos mas “numa resposta universal porque não há necessidade de ter uma unidade de cuidados paliativos especificamente para doentes seropositivos, porque as exigências são iguais a um doente de hepatite ou de cancro”. O sacerdote aponta que não faz sentido haver distinção. Selecção discriminatória “Quem precisa de assistência contínua porque não tem capacidade de estar sozinho, não têm resposta nem nos equipamentos da Igreja, o que é escandaloso”, sublinha o Pe. António Pires que aponta “descriminação, não falta de equipamentos”. “Não há diferença, a nível de internamento entre um doente com hepatite B e um seropositivo”. Quando o acompanhamento ao doente pede o internamento “estamos numa fase de completa dependência, onde nem o centro de dia ou o acompanhamento domiciliário podem ajudar”, explica o sacerdote. O Pe. António Pires denuncia uma selecção, feita pelas instituições, para o internamento de doentes seropositivos. “Esta é uma situação concreta que o país não enfrenta e a Igreja não denuncia”. O Projecto Sorriso precisa, actualmente de três vagas para internamento e “todas as respostas em IPSS e em centros lucrativos são negativas”, explica Carla Dias. “Os equipamentos da Igreja têm de ser inclusivos porque também o país não pode ter lares para seropositivos”. Situações como esta começam a sentir-se e o Pe. António acredita que as respostas não poderão ser adiadas pois também existem muitas pessoas a passar por quimioterapias “que ficam completamente sozinhas em casa. E a Igreja, não diz nada?” O pároco rejeita que tenha de ser o Estado a dar respostas aos seropositivos, pois esta é uma responsabilidade da sociedade civil, “o Estado tem de apoiar e ser colaborante”. As instituições que acompanham e ajudam os seropositivos “devem ser adaptáveis às necessidades que mudam”. O Estado deve estar “disponível para colaborar em determinadas áreas, nomeadamente na hospitalização, na medicação e no direito que a pessoa tem para ser tratada”. O Projecto Sorriso dá resposta ao concelho de Almada. “Estranho se no país não há mais respostas e se a Igreja não vê isso”, mas o Pe. António indica desconhecer outras valências similares. “A Igreja é um organismo multicelular e por isso mais próximo das pessoas. As necessidades das pessoas são essenciais para a Igreja”. As iniciativas que surgem são fruto de “iniciativas pessoais, mas não pode funcionar assim, até porque não é um sacerdote que tem a visão do conjunto, são os bispos, e estas informações devem fazer parte da reflexão episcopal”. No entender do sacerdote “a Igreja fala pouco e cruza mal a informação teórica com a realidade próxima, acho que não está atenta. Fala-se muito em prevenção, mas a Igreja deve estar atenta aos sinais e não está”. Discriminação subtil Segundo o Pe. António Pires o problema centra-se não na Sida, mas na doença. Para aceitar um seropositivo, a sociedade e cada ser humano tem de conceber que pode ficar doente. “E na nossa sociedade não falamos em doença. Quando canalizamos o discurso para a Sida, sobressaem os preconceitos e pensa-se «tem sida porque se portou mal». Faz-se um discurso na terceira pessoa”. Frisa o sacerdote que o preconceito não se ultrapassa com a questão do preservativo. “O discurso não pode centrar-se na Sida ou no preservativo, mas na humanidade e no nosso corpo”. “A maioria das pessoas que chega ao projecto foram contaminadas devido à toxicodependência, mas a descriminação está ainda relacionada com a forma como a doença foi encarada inicialmente e por isso, é vista como consequência de um comportamento sexual”, explica o Pe. António Pires e acrescenta que enquanto a Igreja não mudar o seu discurso sobre a sexualidade, “dificilmente se consegue mudar a descriminação”. O Pe. António Pires conta que a discriminação acontece sempre que se sabe que há contaminação. “É imediata esteja a pessoa a morrer ou a viver com a doença crónica. A doença é vista como um castigo”. O sacerdote afirma que “a doença em si já é injusta e este comportamento agrava a injustiça”. Sucessos diários Todas as pessoas são acompanhadas até se tornarem autónomas. Percebe-se a autonomia quando “as pessoas deixam de aparecer”, explica o Pe. António Pires. Os sucessos são medidos diariamente. “É um sucesso uma pessoa seguir a sua vida, mas tomar um banho diariamente, tomar a sua medicação, comer todos os dias, ir ao Centro de Dia, não vomitar, não ter o corpo com feridas são sucessos. Para uma pessoa que há três anos atrás era um esqueleto, vivia miseravelmente, e que hoje sai de sua casa e vai ver os seus amigos, este é um sucesso”, explica o sacerdote. Todas as pessoas sabem que o Projecto Sorriso é uma resposta de Igreja e que há um padre. A preocupação desta valência é responder a todas as dimensões desejadas, sem impor nada. “Já baptizei vários. Se precisam, pedem”, afirma o sacerdote. Não foi com o propósito de evangelização que o Projecto Sorriso abriu, mas sim para dar resposta a uma necessidade. “A questão espiritual situa-se na mesma dimensão das restantes necessidades sentidas a que a instituição tenta responder “independentemente de quem são, de onde vêm ou para onde vão”. O Pe. António Pires conta que a igreja está cheia de Segunda a Segunda nas suas diversas formas de agir, respondendo a tudo o que as pessoas pedem. Na forma mais simples de ser Igreja. Nota: esta reportagem não tem rostos porque alguns utentes do Projecto Sorriso foram discriminadas quando em anteriormente decidiram mostrar o seu testemunho. A reportagem foi realizada sob com o compromisso de não revelar identidades e rostos.


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