Peguemos em “São Paulo”, a biografia escrita por Teixeira de Pascoaes, cuja primeira edição data de Abril de 1934, o ano em que Pessoa publica a “Mensagem”. Nesta estação Paulina e jubilar, o encontro com este nosso clássico constitui um curioso desafio.
Diga-se logo: para Pascoaes o mais interessante não era a genialidade do Paulo teólogo, que cruza o profundo mundo da tradição judaica com endereços da cultura helenística na sua apresentação incontornável da novidade cristã. O mais interessante não era a reinvenção do género epistolar do Paulo autor, o tom da sua escrita que conjuga uma vivacidade de pregação religiosa popular com essa solidão que, tantas vezes, é a caligrafia mais autêntica do pensamento; nem era o desenho verbal do Paulo esteta, a típica acumulação de sinónimos, o jogo intrincado dos paralelismos, no fundo, aquelas figuras que tornam inesquecível o movimento das suas frases (“quando eu era criança/ pensava como criança/ depois que me tornei homem/ desapareceu o que era próprio da criança”, 1 Cor 13,11). O mais interessante era o mesmo o “floco de neve e labareda”, o “vulto mal delineado na penumbra”, o “animal apaixonado”, o “anjo”, o “faminto de Deus”. Era verificar como “o esqueleto emagrecido” de um Homem “é transtornado, de súbito, por íntimas energias imprevistas”. Era explorar num indivíduo, suficientemente batido por ventos contraditórios, tombado do cavalo do seu próprio destino, revolvido pela revelação da Graça, as grandes e únicas fronteiras simbólicas do Ser Humano.
Recolhe uma certa unanimidade entre os estudiosos a observação que mais do que vidas de santos (São Jerónimo, Santo Agostinho), mais do que a biografia de São Paulo, Pascoaes foi escrevendo a sua autobiografia interior. Mesmo nos magníficos desenhos que Pascoaes dedicou ao apóstolo, podem espiar-se, afinal, os traços do seu próprio rosto (aquele rosto magro, de pedra), como se de uma impressão pessoal se tratasse, e não de uma representação qualquer. Só que isso, olhado por um tempo como escolho, deve ser visto como grandeza maior desta obra: a sua obstinada condição de espelho. Se Pascoaes descreve o itinerário místico de Paulo é também para buscar-se a si mesmo.
Tolentino Mendonça,
Secretariado Nacional da Pastoral
da Cultura (www.snpcultura.org)