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Semana de Acção Global contra o comércio que empobrece

Além-Mar
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Organizações de todo o mundo levam a cabo este mês uma Semana de Acção Global, tentando uma vez mais chamar a atenção para a urgência de praticar um comércio com justiça e contribuir assim para reduzir a miséria nos países em desenvolvimento. A Semana de Acção Global para combater as regras injustas que fazem pender a balança comercial a favor dos países ricos decorre de 10 a 16 de Abril. Não sendo liderada por nenhuma instituição específica, representa uma oportunidade para todos os movimentos e organizações que se batem por um comércio mais justo, contra as regras de um neoliberalismo puro e duro e pela defesa de um pagamento adequado seja para os produtos e matérias-primas, seja para a mão-de-obra dos países em desenvolvimento. A ideia nasceu durante a Conferência Internacional de Campanhas de Comércio, realizada em Novembro de 2003 em Nova Deli. Posteriormente, foi debatida a nível internacional e analisada durante o Fórum Social Global que decorreu em Mumbai (Bombaim, na Índia), em Janeiro do ano passado, tendo desde então conquistado a adesão de grupos, organizações e activistas de todo o mundo. A Semana de Acção inclui uma série de iniciativas destinadas a chamar a atenção, previstas para todo o mundo. Na Europa, estão agendadas actividades na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Inglaterra, Irlanda e Noruega. Na Alemanha, por exemplo, as centenas de acções incluem a recolha de postais ilustrados pedindo uma maior justiça no comércio internacional, os quais serão posteriormente enviados ao ministro da Economia, Wolfgang Clement. Do mesmo modo, está programado para Berlim um jogo de futebol a ser disputado de acordo com as regras do «comércio injusto», ou seja, aquelas por que se rege actualmente a Organização Mundial de Comércio (OMC). Também na Dinamarca está previsto um jogo de futebol segundo as mesmas regras, enquanto em Londres foi planeado um protesto nocturno «para acordar o Governo». Na Irlanda, foi organizada uma «marcha do cereal», em que cada participante deverá levar uma mão-cheia de grãos para um lugar previamente determinado. À iniciativa aderiram igualmente países em desenvolvimento da África e da Ásia. Entre eles conta-se Moçambique, onde se realizarão conferências, debates e seminários envolvendo estudantes, sindicatos, organizações de mulheres e organizações não governamentais. A Semana de Acção Global conta com o apoio de centenas de organizações não governamentais em todo o mundo, parte delas ligadas a Igrejas. Uma dessas organizações é a Rede Fé e Justiça África-Europa (AEFJN). A iniciativa tem como objectivo «desafiar o mito do comércio livre», «contestar e influenciar a agenda de trabalhos do G8, do FMI, da OMC, do Banco Mundial e dos governos do Norte e do Sul», «propor outras soluções», «mostrar a dimensão do movimento mundial» e «fazer crescer o movimento desenvolvendo uma campanha coordenada». Basicamente, esta Semana de Acção pretende «dizer não» aos países ricos que impõem aos Estados pobres acordos comerciais injustos e «dizer sim» ao direito de cada ser humano a dispor de víveres, uma fonte de receita, água, saúde e educação. Esta Semana de Acção Global contesta o «mito do comércio livre», à sombra do qual «os países pobres são obrigados a abrir os seus mercados às empresas estrangeiras e às importações», ao mesmo tempo que «deixam de poder ajudar os produtores vulneráveis» e se vêem forçados a «privatizar serviços essenciais». Como tal, pretende-se exigir à OMC a prática de políticas que tenham em consideração as necessidades dos mais pobres e, ao FMI e Banco Mundial, que deixem de impor, a troco de novos empréstimos, condições que os deixam ainda mais pobres. Condenados são igualmente todos os acordos comerciais regionais e bilaterais que «dão prioridade aos lucros em vez das pessoas». Pobres mais pobres Num relatório recente, a organização britânica Christian Aid sublinha que «o mito do comércio livre está prestes a explodir», pois, «sob a sua influência, os pobres continuaram na sua maioria pobres e muitos ficaram até mais pobres, alargando-se o fosso entre ricos e pobres». «Os que têm levado a cabo a liberalização comercial não têm tido em consideração a economia da pobreza no mundo em desenvolvimento, onde os pobres vivem sobretudo em comunidades que têm a agricultura como principal actividade e onde os serviços e infra-estruturas são fracos ou inexistentes», afirma o relatório da Christian Aid. «A liberalização ignora uma das características fundamentais do mundo em desenvolvimento – 900 milhões de pobres vivem em áreas rurais e dependem da agricultura. Estes agricultores em pequena escala não podem competir com as empresas agrícolas industrializadas que, para mais, dispõem muitas vezes de apoios do Governo.» Nesse sentido, defende esta organização, os acordos de parceria económica da União Europeia «devem acabar» e as parcerias com as antigas colónias «devem assumir outro carácter», ao mesmo tempo que «os subsídios maciços pagos nos países ricos devem ser substancialmente reduzidos», na medida em que «causam prejuízos incomensuráveis aos produtores dos países pobres». A Christian Aid reconhece que «a Organização Mundial de Comércio constitui a melhor esperança para os países pobres», mas a atitude de egoísmo dos países ricos deve acabar a bem do desenvolvimento. «Acima de tudo a OMC deve conceder um tratamento especial aos países em desenvolvimento, permitindo-lhes a flexibilidade de que necessitam para gerir as suas economias.» Comércio em vez de ajuda O movimento Comércio Justo (Justiça no Comércio é outra designação possível) nasceu por ocasião da 1.ª conferência da Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), realizada em Genebra em 1964. Estava-se em pleno boom da independência dos países africanos, os quais, sob o lema «Comércio, não ajuda» começaram por exigir aos países desenvolvidos acesso para os seus produtos agrícolas. Passadas mais de quatro décadas, as normas que regem o comércio internacional continuam a ser profundamente injustas. A começar pelo proteccionismo dos subsídios que, tantos os Estados Unidos da América como a União Europeia, os grandes defensores do livre mercado, concedem aos seus produtores, tornando impossível a competição dos produtos dos países em desenvolvimento. E a acabar nas políticas da OMC, do FMI e do Banco Mundial, que forçam a abertura dos mercados dos países em desenvolvimento, impõem privatizações e impedem incentivos sem ter em conta a realidade das suas economias. A consciência deste desequilíbrio levou ao aparecimento de dois movimentos que se complementam: um que se bate pelo fim dos subsídios aos produtores dos países ricos e por um maior acesso dos produtos dos países pobres ao mercado internacional; outro que, sem esperar que as regras se tornassem mais justas, decidiu «fazer justiça pelas próprias mãos», criando espaços onde os produtos dos países do Terceiro Mundo são vendidos em condições mais vantajosas (ver págs. 20-23). As organizações europeias de Comércio Justo, unidas na Associação Europeia de Comércio Justo (EFTA), tentam garantir a procedência dos produtos e o respeito pelo meio ambiente na sua elaboração através de «selos de garantia». Na Europa existem três marcas de Comércio Justo de longa tradição, a saber: a Max Havelaar, a TransFair e a Fair Trade Mark, que comercializam café, cacau, chocolate, mel, açúcar e chá. Os especialistas estão, no entanto, preocupados com alguns sinais que ameaçam minar os próprios fundamentos do movimento Comércio Justo. Entre elas, etiquetas que têm surgido na Europa e América do Norte e que não indicam de maneira exaustiva a procedência do produto, iludindo assim o consumidor responsável, e, por outro lado, tentativas de várias empresas multinacionais de se substituírem aos mediadores, abolindo assim o carácter não lucrativo que estes apresentam. O caso de Moçambique No seu relatório, a Christian Aid cita três casos exemplares: as cooperativas de produção de lacticínios na Índia, os produtores de arroz nas Honduras e a indústria do açúcar em Moçambique. O documento recorda que Moçambique era considerado, na década de 90, o país mais pobre do mundo e como, após a assinatura dos acordos de paz em 1992, o Governo iniciou a reconstrução do país. «Economicamente, fazia sentido voltar a desenvolver a indústria açucareira. […] Mas a natureza especial do mercado internacional do açúcar significava que isso não seria o suficiente.» Por isso, o Governo interveio no sentido de garantir que esta indústria se tornaria atraente para os investidores e que os agricultores locais não sofreriam com as flutuações do preço no mercado internacional. Para tal, determinou um «preço de referência» para o açúcar importado e passou a cobrar uma taxa sobre o produto importado sempre que este tivesse um preço inferior. No ano 2000, o país foi devastado por inundações e sofreu a ameaça de outra – a exigência do FMI de que o mercado de açúcar moçambicano fosse aberto à competição internacional. Este finalmente recuou na exigência e, hoje, a reabilitação da indústria açucareira atraiu já 350 milhões de dólares de investimento estrangeiro, garantindo emprego a mais de 20 mil pessoas. Protestos criativos Muitas e diferentes actividades estão a ser preparadas em 70 países, por mais de 150 organizações, para a semana de 10 a 16 de Abril. Na Internet, o sítio www.april2005.org, da Semana de Acção Global, recebeu cerca de 30 mil visitas até ao mês de Janeiro e está a ser permanentemente actualizado com notícias sobre as iniciativas. No Reino Unido prepara-se, para dia 15, um protesto nocturno no centro de Londres para acordar o Governo para a importância do comércio justo. Para Bruxelas, está marcado um cortejo fúnebre, no dia 14, em direcção ao Departamento do Comércio. Já na Alemanha, as actividades culminam, no dia 16, com um protesto maciço contra o ministro do Comércio. Exemplos de actividades em planeamento, não só na Europa como em países de todos os continentes. Entre as ideias mais populares destacam-se as dez com maior adesão: Jejuns. No dia 11 de Abril, deixar de comer uma refeição, ou ficar sem comer todo o dia, em solidariedade para com os 850 milhões de pessoas que passam fome. Debates. Organizar debates sobre a justiça no comércio com a participação de personalidades destacadas e assim ajudar a sensibilizar as pessoas. Marchas. Realizar marchas em que todos os participantes levem um punhado de grãos na mão para depositar frente ao edifício de uma instituição. Procissões. Levar em procissões fúnebres um caixão cheio de grãos até à sede de uma instituição para mostrar como o comércio injusto mata. Batucadas. Tornar marchas, manifestações e protestos o mais barulhentos possíveis. Batuques, tambores e tachos servem de instrumentos de percussão. Cerimónias. No dia 10 de Abril, organizar cerimónias e actos religiosos em todas as catedrais do país. Manifestações. Organizar manifestações em cada distrito para juntar os activistas em protestos. Jogos. Realizar partidas de futebol e outras modalidades desportivas com regras injustas e equipas desiguais para ilustrar a injustiça do comércio mundial. Actividades. Organizar actividades culturais como concertos e peças de teatro para divertir e sensibilizar os assistentes. Campanhas. Promover abaixo-assinados ou o envio de postais a favor de uma mudança nas regras do comércio internacional. Em Portugal, onde este tipo de questões e de campanhas ainda não despertam a atenção da uma parte significativa da opinião publica, ao contrário do que acontece há anos na generalidade dos países europeus, estão para já apenas previstas duas iniciativas: no dia 11, decorre na residência dos Missionários do Verbo Divino (Rua Tomás de Aquino, 15, - Lisboa), uma tarde de reflexão sobre finança ética; encontra-se igualmente em curso a recolha de assinaturas a pedir o cancelamento da dívida dos países pobres. Quer o financiamento quer o perdão da dívida são essenciais para possibilitar o desenvolvimento do sector agrícola, que, sobretudo em África, carece de uma forma geral de infra-estruturas, irrigação ou qualquer forma de enriquecimento dos solos. Como grande parte da população se continua a dedicar, sem quaisquer meios, a uma agricultura de «subsistência» em terrenos esgotados e ciclicamente sujeitos a secas, não é possível deter o ciclo da fome. Quando a isto se junta as regras injustas do mercado internacional, não é de estranhar que não seja viável romper o círculo vicioso do empobrecimento. Ana Glória Lucas, in Além-Mar Notícias relacionadas • Institutos religiosos e missionários pedem mais justiça nas relações entre a UE e a África


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