Entre recados ao poder político, a Comissão Nacional Justiça e Paz pede aos cristãos que abandonem a apatia e lutem contra os efeitos da crise económica
A Comissão Nacional Justiça e Paz lançou hoje duras críticas ao rumo que o país está a tomar, advertindo que a crise económica atinge de forma “dura e inadmissível” os mais pobres e desprotegidos.
“Se não acordarmos a tempo, entraremos num plano inclinado de tensão, conflitos e violência”, disse aos jornalistas a economista Manuela Silva.
O organismo da Igreja Católica, criado para promover os ideias da justiça e da Doutrina social da Igreja, apresentou esta manhã em Lisboa uma carta dirigida a todas as comunidades católicas do nosso país, a ser distribuída durante esta Quaresma, que tem como título “Um outro olhar sobre as desigualdades e a exclusão social. Um outro compromisso com um mundo mais justo e solidário”.
No texto, que a Agência ECCLESIA publica hoje, tecem-se apreciações negativas ao actual estado de “apatia e aparente conformismo” dos portugueses perante situações de desigualdade e exclusão social.
“Dado que o país conheceu durante anos um forte crescimento económico e beneficiou de fundos comunitários, é inadmissível o número de cidadãos portugueses em situação de pobreza e risco de exclusão”, atirou Manuela Silva.
A carta da CNJP critica a pobreza galopante, o crescimento do desemprego e do trabalho precário, bem como o nível de remuneração média dos portugueses.
“É preocupante que o desemprego tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos e afecte, hoje, mais de 400 mil pessoas, das quais boa parte sem quaisquer perspectivas realistas de vir a encontrar um novo emprego, a curto ou médio prazo”, pode ler-se.
Mais contundente é a apreciação da discrepância entre os rendimentos da maioria dos trabalhadores “em contraste com remunerações escandalosamente altas de gestores e de outros profissionais”.
“É intolerável que os níveis de remuneração média dos trabalhadores e o salário mínimo permaneçam consideravelmente abaixo dos valores médios que se verificam nos outros países da União Europeia. Mais grave ainda é o facto de que os níveis de salário mínimo e pensão mínima sejam fixados em valores que, reconhecidamente, ficam, no caso do primeiro, muito próximo do limiar de pobreza e, no caso da segunda, abaixo desse limiar”, acusa o documento.
Instigada a comentar se nestas linhas se encerra uma crítica directa à governação do nosso país, Manuela Silva admitiu que “a carta pode ser lida de várias maneiras e é desejável que o seja”.
RESPOSTA INSUFICIENTE DO PODER PÚBLICO
A CNJP manifesta-se claramente preocupada com o facto de não se vislumbrar, no nosso país, qualquer solução para as situações de pobreza e exclusão de muitos portugueses.
“A crise atinge de forma mais dura os pobres, desprotegidos e vulneráveis, o que nos deve levar a questionar o porquê de não existirem mais opções claras para os defender, mesmo nas políticas públicas”, afirmou Jorge Wemans durante a conferência de imprensa para o lançamento da carta.
Manuela Silva explicou que, face à actual crise económica, seria de admitir que os serviços públicos “compensassem a situação”, algo que não se verifica nem deve verificar a curto prazo, de acordo com a CNJP.
“Os padrões de qualidade dos serviços públicos de educação, de saúde e, de modo geral, dos demais bens públicos, longe de revelarem desejáveis melhorias, parecem regredir, provocando efeitos particularmente negativos para as pessoas de menores rendimentos”, escreve-se aos católicos de Portugal.
A carta acrescenta que “os processos de privatização em curso, nomeadamente no que toca a bens públicos básicos, designadamente a água, os correios ou os transportes urbanos, para não falar da saúde e da educação, poderão configurar cenários de maior desigualdade e cavar o fosso entre ricos e pobres, acabando por mercantilizar direitos humanos e sociais básicos”.
Para este organismo católico, o frequente argumento da necessidade de controlo orçamental já não basta para justificar medidas de restrição da despesa pública, “que não pode ser aceite sem ponderação dos seus efeitos sobre a extensão e a qualidade dos serviços públicos prestados ou as reduções drásticas de remunerações e regalias dos funcionários públicos sem negociação com os interessados e sem contrapartidas”.
CRISTÃOS EM (IN)ACÇÃO
A carta da CNJP apela a todos os cristãos a reagirem diante deste estado de coisas, contrariando aquilo que o organismo chama de “fraca sensibilização à pobreza e à desigualdade, não as considerando como males sociais, produzidos pela própria sociedade e prejudiciais para a mesma”.
De acordo com Jorge Wemans, interessa agora perceber que sociedade será nossa quando sair da crise económica em que está mergulhada. “Se vivêssemos segundo os critérios evangélicos, haveria uma maior grau de resposta solidária”, assegura.
“Os cristãos têm de ser actores de transformação na sociedade portuguesa”, acrescentou Manuela Silva.
A missiva da CNJP lamenta que “os cristãos pouco confrontem as suas atitudes e comportamentos na sociedade (trabalho, negócios, ensino e investigação, participação cívica e política) com as exigências que decorrem da sua fé em Jesus Cristo”.
Nesse sentido, interpela-se cada cristão a lutar para que cada pessoa possa encontrar, na sociedade a que pertence, “condições para uma vida digna, nomeadamente o direito ao trabalho com garantias e sua justa remuneração, mas também o acesso a uma habitação condigna, à saúde, à educação, à segurança”.
“Podemos sempre fazer algo para mudar este estado de coisas. Bastaria que, numa sociedade em que a maioria das pessoas se reconhece como cristã, vivêssemos mais de acordo com os critérios Evangélicos para que os problemas colectivos que enfrentamos encontrassem resposta”, conclui o documento.
A carta da CNJP• Um outro olhar sobre as desigualdades e a exclusão social. Um outro compromisso com um mundo mais justo e solidário