Completam-se hoje 60 anos sobre o final do primeiro Cursilho de Cristandade da história. O evento teve lugar em Cala Figuera de Santinyí, Maiorca, entre 20 e 23 de Agosto de 1944.
Nesta ocasião, apresentamos o testemunho de Salvador Escribano Hernández, participante no primeiro cursilho.
“Algumas palavras prévias:
Quando, por iniciativa de Eduardo Bonnín e amável convite de Francisco Oliver, ambos destacados dirigentes de Palma de Maiorca e de minha terra natal – Felanitx –, respectivamente, assisti a esse “cursilho” do chalé de Cala Figuera Santinyí, em Agosto de 1944, juntamente com mais treze jovens, nunca imaginei – nem ninguém podia imaginar – a imprevisível ressonância que essa singular experiência teria no Mundo, os milhões de pessoas que, a partir daí, viveriam uma experiência semelhante que viria a transformar radicalmente as suas vidas, e menos ainda que passados sessenta anos, eu estaria aqui, perante vós, esquadrinhando os empoeirados arquivos da minha oxidada memória, procurando encontrar algo daquela vivência íntima que possa partilhar convosco.
Há-de ser importante, já que amigos meus de países distantes e agora da minha própria diocese, me pedem que vos fale do que foi o Cursilho de Cala Figuera. Não creio ser a pessoa mais indicada. Mas sendo dos poucos que sobrevivem e não tendo vocês à mão mais ninguém nem melhor, não vos resta, nem me resta a mim, outra solução.
Alguns pormenores esvaíram-se, perderam-se algures com o passar e o peso dos anos. Outros conservam-se, aí estão, intactos; tenho-os claros na própria alma como se tivessem acontecido ontem. É destas, das recordações que perduram e se mantêm frescas que vos falarei.
Assim sendo, e se não me levam a mal, gostaria de começar por falar um pouco de mim, da minha pequena história; talvez assim possais ter uma ideia mais clara e real daquilo que o Cursilho de Cala Figuera foi e significou para um desses catorze jovenzinhos que, sem o saber, assistiu ao seu encontro com a História, naquele 20 de Agosto de 1944.
A minha pequena história
Provenho duma família modesta e não numerosa, cujas raízes se perdem na Província de Salamanca, ali por Castela a Velha. Obrigados pelas circunstâncias, os meus pais, recém casados, emigraram para Felanitx em 1921, cidade em que o meu progenitor foi colocado em recompensa dos ferimentos sofridos ao participar na Guerra del Riff, no norte de África, quando Espanha tinha o protectorado de Marrocos.
De meus avós apenas sei que os paternos se chamavam Josefa Martinez e Salvador Escribano Hernández, e os maternos Bonifácia Martin e Romualdo Hernández. Doutros familiares não resta mais que uma vaga recordação.
Meus pais: Antonio Escribano Martinez (1900-1977) e Valentina Hernández Martin (1901-1982). Ele, um homem trabalhador e afável, de contrastante temperamento e nervos à flor da pele. Ela, uma mulher pacífica, dona de casa, amiga de ajudar, sempre dependente dos filhos e das tarefas domésticas. A sua preocupação foi criar-nos e fazer-nos felizes; foi ela quem cuidou de que não nos faltasse formação e orientação religiosas.
Fomos três irmãos: Pedro (1939-), o mais novo, Josefa (1931-1934), a do meio, falecida; e eu, Salvador, o mais velho dos três.
O meu nome completo é SALVADOR ESCRIBANO HERNÁNDEZ, nascido a um de Setembro de 1929, na localidade de Felanitx, situada a Sul da Ilha, a 50 Kms de Palma de Maiorca, a 10 de Santinyí (Cala Figuera).
A minha infância e adolescência decorreram de forma tranquila e feliz, por vezes sacudidas pelos sobressaltos da guerra civil (1936-1939), que, de vez em quando, interrompia a pacatez local.
A partir dos doze anos costumava assistir aos Exercícios Espirituais que, anualmente organizava, durante o Verão, D. Juan Vidal Olleres, assistente da Acção Católica, associação que reunia os jovens dos 12 aos 17 anos. E não muito depois, pouco antes de completar os 15, vivi o célebre Cursilho de Cala Figuera, de que vos falarei mais adiante.
A minha adolescência chegou quando o colapso mundial ia avançado, e também o sentimos pela carência de alimentos. Tínhamos que comer do que havia: pão de milho e o que distribuíam no racionamento, que não era muito, e alguma coisa que meu pai conseguia comprar na “candonga”.
Entretanto as asas cresciam e fortaleciam-se como que a prepararem-se para levantar voo.
Esse dia chegou aos 19 anos (1948), quando me mudei para Barcelona, com a intenção de me submeter à “Revalida”, em que fiquei aprovado, juntamente com Paco Grimalt e Toni Binimelis.
Aprovado na Revalida e com o desejo de fazer carreira, aliadas à necessidade de viver por meus próprios meios, mudei-me para Madrid, tendo assim rompido com o incipiente vínculo aos Cursilhos. Afastei-me de Felanitx e separei-me dos meus pais que me deram uma modesta mesada de apoio e por conselho um “não faças disparates e não o estragues”. Minha Mãe ficou com os olhos humedecidos.
O tempo passou e entrei na Academia, preparei-me e concorri aos Serviços Alfandegários, lugar que obtive em 1961 com colocação em Port Bou.
De vez em quando ia até Felanitx. Foi durante as férias de 1953 que conheci Maria Mesquita Perelló com quem 8 anos depois me casaria (27 de Setembro de 1961). Tivemos dois formosos rebentos, António Miguel (1962-), que me deu dois netinhos adoráveis (Miqel Ángel e Marc) e Valentina Maria de los Ángeles, (1963-1997), falecida num acidente fatal.
Em 1965 fui colocado na Inspecção de Muelles de Palma de Maiorca, onde permaneci até 1992, ano em que decidi aposentar-me por motivos de saúde, depois de ter sofrido um enfarte.
Com o passar dos anos vieram os achaques e também os de minha querida Maria que, após uma dolorosa e prolongada doença, faleceu (14 de Março de 2002).
Depois da morte de Maria, já nada era igual. A minha vida perdeu sentido e razão de ser. Afundei-me numa terrível depressão, sentia-me morrer, queria morrer… Momentos verdadeiramente difíceis.
A Eucaristia e a oração do Rosário do Cenáculo Mariano da Virgem da Paz, de Buenos Aires, foram suporte e bálsamo para as minhas feridas.
Muito recentemente, sem que me desse conta, a semente lançada no Cursilho de Cala Figuera começou a palpitar, a dar sinais de vida. Tinha estado adormecida durante quase sessenta anos, à espera de germinar, de dar os frutos desejados.
O milagre ainda não tinha acontecido… “algo” (que agora sei que foi “Alguém”) animou-me a escrever umas quantas linhas na Internet, sem destinatário concreto. Depois de infrutíferas tentativas, alguém respondeu à minha lacónica nota; a sua resposta espontânea, fraternal e de sincero interesse em conhecer-me, surpreendeu-me; sabia o meu nome, sabia de mim, de Cala Figuera, de Eduardo. Emocionei-me até às lágrimas, quase me comovi. Não conseguia acreditar que um acontecimento que eu tinha praticamente esquecido, ocorrido quase há 60 anos, num solitário e recôndito chalé, tivesse atingido tamanha dimensão.
Sem o saber, o meu desconhecido interlocutor e os seus cada vez mais frequentes emails iam-me infundindo e dando ânimo, fazendo-me voltar à vida e despertavam a semente.
Aos seus emails seguiram-se outros emails, e logo outros e outros, de outros tantos cursilhistas internautas que generosa e fraternalmente também queriam saber de mim, de nós, de Cala Figuera…
A semente finalmente despontou e enraizou na própria alma. Consumava-se o milagre.
É esta a razão, meus amigos, porque me atrevi a escrever, a falar-vos não só do que foi o Cursilho de Cala Figuera, mas também do milagre que produziu em mim, não precisamente no momento em que o vivi, mas 60 anos depois.
O Senhor foi misericordioso e providente: graças ao facto daquela semente ter brotado, crescido e frutificado em abundância o pesadelo ficou para trás; voltei para Ele; a minha vida tem sentido; Maria, Valentina e eu estamos em paz; tenho o meu filho e os meus netinhos; coisas ainda a fazer; experiências a viver; entranháveis laços de amizade que se multiplicam rapidamente por todo o mundo. Tudo indiscutível expressão do amor que Deus nos tem.
Pude reencontrar-me comigo mesmo, com Deus e com o meu próximo e, muito especialmente com o homem que, com o coração, lançou a semente no meu coração, Eduardo Bonnín Aguilló, com quem, para além disso, como se tudo isto ainda fosse pouco, faço reunião de Grupo todas as quintas-feiras, às seis da tarde em ponto. Posso desejar mais?...
Obrigado Senhor! Dou-te muitas graças por Eduardo e por todos os muitos e bons amigos com quem me permites partilhar diariamente. Obrigado pela sua solidária e fraternal amizade que me devolveu a Fé, a confiança no Homem meu irmão e o desejo de viver.
Esta foi, queridos amigos, em poucas palavras, a minha pequena história, o que foi e o que é a minha vida: encontros e desencontros, alegrias e tristezas e toda a espécie de vicissitudes entraram no meu alforge, onde, graças a Deus e ao Cursilho de Cala Figuera, ainda há espaço, e muito, para o entusiasmo, a entrega e o espírito de caridade.
Palma de Maiorca, Espanha, 20 de Agosto de 2004.
De colores!
Salvador Escribano Hernández
(Tradução de Gaspar da Silva, MCC da Diocese de Santarém, Portugal)