Vaticano

Dar de comer a quem tem fome… Agora

Elias Couto
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Intenção do Santo Padre para o Apostolado da Oração – Fevereiro 2003

Que os cristãos, tomando consciência da situação calamitosa dos povos que sofrem a fome e a sede, se tornem mais solidários para com esses irmãos. 1. «Vinde, benditos de meu Pai (…). Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber…» (Mt 25, 34-35). Por séculos e milénios, a fome foi uma ameaça constante presente no quotidiano das populações humanas. Era o resultado da incapacidade para enfrentar as situações de escassez, quando a natureza se mostrava agreste e os campos não produziam alimentos, ou quando os desmandos dos poderosos, as guerras e as pestes impediam o cultivo dos campos. Basta ler o Antigo Testamento para perceber como a fome ameaçava, ciclicamente, a sobrevivência de populações inteiras. Compreende-se, por isso, que Jesus tenha incluído no seu discurso sobre o «julgamento final», logo no início, as «obras de misericórdia» relativas aos esfomeados e aos sedentos. Mas não apenas por isso nem essencialmente por isso. 2. Jesus conhecia a sociedade do seu tempo, conhecia as desigualdades sociais, a situação de tantos que passavam fome enquanto os ricos se banqueteavam. E tinha consciência plena da injustiça desta situação e de como ela feria o plano de Deus, Pai comum de todos os homens. Veja-se, a propósito, a parábola do pobre Lázaro e do rico avarento (cfr. Lc 16, 19-31). A pregação eclesiástica quase sempre aproveita esta parábola apenas para meditar sobre a realidade do céu e do inferno – e, às vezes, para acentuar a paciência a ter neste mundo, face às privações, em vista da recompensa no outro! Ora, a parábola é também, talvez essencialmente, uma fortíssima denúncia da injustiça social e da falta de humanidade do rico (que nem sequer tem nome, de tão desumano!), diante do pobre Lázaro (esse sim, plenamente humano, ao ponto de ser chamado pelo nome próprio). É a desumanidade do rico, e não a riqueza, que o conduz ao «lugar do tormento»; e é a humanidade do pobre, e não a pobreza, que o leva «ao seio de Abraão». 3. Dois mil anos depois, a actualidade das palavras de Jesus anunciando a «matéria» do julgamento final é evidente: contam-se por milhões as pessoas subnutridas; continuam a morrer pessoas à fome, não algumas, mas milhões, todos os anos; milhões de pessoas não têm acesso a água potável, não sabem o que é ter água canalizada em casa… nem sequer sabem o que é ter uma casa. E, hoje, na maior parte dos casos, estas situações não resultam da impotência humana face à natureza, são antes fruto da desavergonhada apropriação por alguns daquilo que deveria ser património de todos. São fruto da sujeição de povos inteiros à ganância, prepotência e desumanidade das classes dirigentes de muitos países, mas também da indiferença dos ricos (neste caso, os povos ricos do chamado «primeiro mundo»), face à miséria dos pobres (os povos do «terceiro mundo») – indiferença patente na recusa em abrir as fronteiras às exportações dos países pobres, ou na destruição de alimentos para evitar que os preços baixem no mercado mundial, ou no facto de se pagar aos agricultores para produzirem menos ou não produzirem... Claro que há «boas» e «racionais» explicações económicas para tudo isto. O facto, porém, permanece: milhões de pessoas passam fome, quando existem meios para evitar que tal aconteça. Esta foi a vergonha da civilização na segunda metade do século XX e continua a ser a vergonha da humanidade no século XXI. O facto de, no recente Fórum Económico Mundial, que decorreu em Davos, na Suíça, nos finais do mês de Janeiro, se ter criado uma comissão de peritos para analisar, cada ano, os progressos feitos no sentido de, até 2015(!), se reduzir «para metade» o número de pessoas que passam fome é a medida desta vergonha. 4. As palavras de Jesus continuam a ressoar aos ouvidos dos seus discípulos: «tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber». Não apenas porque destes esmola ao «pobrezinho» com fome, mas também, e essencialmente, porque fizestes o que estava ao vosso alcance para alterar as condições que o levaram à fome. É esta a exigência maior: mudar estruturas injustas, em primeiro lugar aquelas estruturas mentais que levam a considerar «normal» haver gente a passar fome. E, pelo caminho, enquanto as estruturas não mudam, «dar de comer a quem tem fome», aproveitando as estruturas já existentes – porque quem tem fome, não tem tempo para esperar «até 2015», precisa de comer «agora».


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