Vaticano

Desertos, realidade e símbolo

Lopes Morgado
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Todos teremos visto imagens do Rally Lisboa-Dacar avançando pelos desertos de Marrocos e da Mauritânia, e depois atravessando áreas desertificadas do Mali, da Guiné e do Senegal. Antes da partida de Lisboa, vários dos seus responsáveis e participantes plantaram algumas árvores na Tapada de Mafra num gesto simbólico. Porque 2006 foi declarado pelas Nações Unidas como Ano Internacional dos Desertos e Desertificação. «A desertificação é uma das formas mais alarmantes de degradação do ambiente. Ameaça a saúde e os meios de subsistência de mais de um bilião de pessoas. E estima-se que, todos os anos, a desertificação e a seca causem a perda de produção agrícola da ordem dos 42 biliões de dólares.» Esta afirmação é de Kofi Annan, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que por isso adoptaram o tema deste Ano Internacional para atacar com urgência tão vastas e devastadoras ramificações do problema. O objectivo da ONU é sensibilizar o público para o avanço dos desertos, as maneiras de salvaguardar a diversidade biológica das terras áridas que cobrem um terço do planeta e a protecção dos conhecimentos e das tradições dos 2 mil milhões de seres humanos afectados. O DESERTO NO “ADN” DO POVO BÍBLICO A Palestina está rodeada pelo deserto a Este e a Sul. E algumas zonas semi-áridas e desabitadas do seu interior também são consideradas “deserto” pela Bíblia. Ao sul destaca-se especialmente o deserto de Judá, que em declive desce do maciço central até ao Mar Morto e ao rio Jordão. Por outro lado, o tema do deserto – na sua realidade e no seu simbolismo – percorre toda a Bíblia, do primeiro ao último livro. Poderíamos dizer, até, que se inscreve no ADN do povo bíblico, integrando a sua matriz social e religiosa. Os descendentes de Jacob ou Israel, «um arameu errante que desceu ao Egipto» (Dt 26,5), quando voltaram para a “terra prometida” tiveram de caminhar durante quarenta anos pelo deserto. O Deuteronómio descreve assim a intervenção de Deus em favor do seu povo, naqueles dias: «Foi Ele quem te conduziu através desse deserto grande e temível, de serpentes venenosas e escorpiões, lugar árido, onde não há água. Foi Ele quem fez jorrar, para ti, água do rochedo duro. Foi Ele quem te alimentou neste deserto com um maná desconhecido dos teus pais, para te humilhar, para te pôr à prova e, no futuro, te tornar feliz» (Dt 8,15-16). Ali foram dizimados pela fome, a sede e a mordedura das serpentes venenosas: nenhum dos que tinha mais de 20 anos à saída do Egipto chegou vivo ao seu destino. Mas foi então que as doze tribos de Israel se uniram num só povo, fizeram uma aliança com o Deus Único e desse modo se constituíram como “povo eleito” (Êxodo 19), organizando-se para O servir e revelar aos outros povos. Finalmente, foram instalados numa terra onde corria leite e mel. A marca desta experiência vê-se logo no segundo relato da criação (Génesis 2), cronológica e culturalmente anterior ao primeiro. O cenário inicial é de deserto (vv. 5-6); o Deus Criador é o Deus a quem Israel chamara Javé, “o Senhor” porque o libertara do Egipto (Ex 15,3); o homem é feito do pó da terra como se faz um boneco de barro, tal como Israel tinha sido “feito enquanto Povo” no deserto poeirento (v.7; o nome de Adão, “Adam”, é descritivo: quer dizer “o que é feito de terra”); o homem é colocado a viver no jardim verdejante do Éden, um oásis ideal para quem sofrera a secura do deserto (vv.8-15). Mais tarde, Israel viu-se obrigado a fazer alianças de defesa com outros povos, sofrendo influências religiosas deles; por outro lado, sentiu atracção pelos cultos de Baal, uma divindade cananeia a quem começou a atribuir a fertilidade do solo, as chuvas e as colheitas. O profeta Oseias chama “prostituição” a essa infidelidade. Refere-se ao deserto como o tempo da juventude de Israel e o lugar onde ele se tornou “Esposa” do Deus Único, pela Aliança. E em nome do seu “Marido”, primeiro ameaça com a desertificação a terra que Ele lhe dera: vai tirar-lhe o trigo, o vinho e o azeite, a lã e o linho; as suas vinhas e figueiras serão transformadas num matagal e devoradas pelos animais selvagens (vv.10-14). Depois, promete reconduzi-lo espiritualmente ao deserto, como forma de renovar a sua fidelidade ao Deus da Aliança: «É assim que a vou seduzir: ao deserto a reconduzirei, para lhe falar ao coração. Aquele dia – oráculo do Senhor – ela me chamará “Meu Marido” e nunca mais: “Meu Bal”. Então, te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com amor e misericórdia. Desposar-te-ei com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor.» (Os 2,16-18.21-22) E o sinal desses tempos novos, é que a sua terra desertificada voltará a ser fértil, produzindo o trigo, o vinho e o azeite (v.24). Mas Israel, geograficamente pequeno e em permanentes lutas internas, após a morte de Salomão partiu-se em Norte e Sul, ou nos reinos de Israel e de Judá, respectivamente. Vulneráveis face aos impérios da região, e após várias tentativas de aliança político-militares, ambos sofreram a invasão e o exílio, vindo a desintegrar-se. Entretanto, o Segundo Isaías – um profeta que acompanhara o povo de Judá no exílio da Babilónia – anuncia poeticamente o seu regresso (que teria lugar em 538), utilizando a metáfora do deserto que se transforma em jardim: «Não vos lembreis dos acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um caminho no deserto, e fazer correr rios na estepe. Glorificar-me-ão os animais selvagens, os chacais e as avestruzes, porque hei-de fazer brotar água no deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu eleito, o povo que Eu formei para mim, e assim hão-de proclamar os meus louvores.» (Is 43,18-21) A VOZ E A PALAVRA QUE VÊM DO DESERTO O mesmo Segundo Isaías (Is 40-55) inicia de forma profética, anunciando um novo Êxodo por acção do mesmo Deus que libertara Israel do Egipto: «Consolai, consolai o meu povo, é o vosso Deus quem o diz. Falai ao coração de Jerusalém e gritai-lhe: “Terminou a vossa servidão, estão perdoados os vossos crimes, pois já recebeu da mão do Senhor o dobro do castigo por todos os pecados.” Uma voz grita: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplanai na estepe uma estrada para o nosso Deus. Todo o vale seja levantado, e todas as colinas e montanhas sejam abaixadas, todos os cumes sejam aplanados, e todos os terrenos escarpados sejam nivelados!”»(Is 40,1-4) Os Evangelhos Sinópticos aplicam estas palavras a João Baptista, o precursor de Jesus. Marcos, que criou o género literário “evangelho”, abre o seu livro adaptando as palavras de Ex 23,20 à sua intenção catequética. Diz o Êxodo: «Eis que Eu envio um anjo diante de ti, para te guardar no caminho e para te fazer entrar no lugar que Eu preparei.» Diz o Evangelho de Marcos: «Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Conforme está escrito: “Eis que envio à tua frente o meu mensageiro, a fim de preparar o teu caminho. Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’.” João Baptista apareceu no deserto a pregar um baptismo de arrependimento para a remissão dos pecados» (Mc 1,1-4; Ev. do II Domingo do Advento passado). Conhecemos a sequência do texto: Jesus foi baptizado por João Baptista, no rio Jordão. «Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias. Era tentado por Satanás estava entre as feras e os anjos serviam-no» (Mc 1,9.12-13; Ev. do próximo I Domingo da Quaresma). E daí, novamente impelido pelo Espírito, voltou para a Galileia onde proclamou o seu programa profético e iniciou a sua pregação (Lc 4,14-27). João Baptista é o profeta que faz a passagem do Primeiro ao Novo Testamento; Jesus, “O Profeta” por excelência. Ambos vêm do deserto para continuar, com o novo povo de Deus, a passagem definitiva do jardim do Éden para o jardim do novo céu e da nova terra prometida, onde não faltará outro rio e uma nova Árvore da Vida (Apocalipse 22,1-2). Os caminhos continuam a ser de conversão e penitência. A Mãe-Igreja nascente vai ter de enfrentar o Dragão das perseguições para salvar o filho recém-nascido, como Israel enfrentou o Faraó do Egipto; e para isso, terá de fugir simbolicamente de novo para o deserto, onde não lhe há-de faltar o alimento de Deus (Ap 12,1-6). A isso nos vai chamar, novamente, a Quaresma, que este ano tem início a 1 de Março. DESERTO, QUARESMA, PÁSCOA As duras condições climáticas do deserto, a inospitalidade e os perigos que o rodeiam, supõem grande despojamento e confiança em Deus; as carências que nele se encontram, exigem solidariedade e entreajuda para sobreviver. Daí nasceram as linhas espirituais que marcam o tempo litúrgico da Quaresma, no qual evocamos os quarenta anos de Israel e os quarenta dias de Jesus no deserto: o silêncio e a oração; a penitência e a conversão; a sobriedade de vida e a renúncia, para a solidariedade e a partilha. Por outro lado, nos documentos oficiais ou na linguagem corrente, a Igreja define-se como «o novo Israel do tempo actual, que caminha em busca da cidade futura e permanente» (Lumen Gentium, 9); «Igreja peregrina», em «passagem por esta vida terrena» na qual «vivemos no exílio» (idem, 48). Considera este mundo como “lugar de peregrinação”; e o nosso corpo, como “tenda” onde a alma se hospeda até receber “uma habitação eterna no céu” (Prefácio de Defuntos). A realidade nua e crua do deserto serviu, também, de analogia para Bento XVI, no início do seu serviço de Pastor da Igreja Católica a 24 de Abril do ano passado, falar das pessoas que vivem noutros “desertos”. Depois de recordar que «a parábola da ovelha perdida, que o pastor procura no deserto, foi para os Padres da Igreja numa imagem do mistério de Cristo e da Igreja», continuou: «E há muitas formas de deserto: o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede; o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Existe também o deserto da escuridão de Deus, do vazio das almas que já não têm consciência da dignidade e do rumo do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornam muito grandes. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço do cultivo do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas estão subjugados ao poder da exploração e da destruição.» Para concluir: «A Igreja no seu conjunto e os seus Pastores, tal como Cristo, devem pôr-se ao caminho para conduzir os homens para fora do deserto em direcção ao lugar da vida, para a amizade com o Filho de Deus, para Aquele que nos dá a vida, e a vida em plenitude.» Essa é, também a finalidade da Quaresma, que nos conduz à Páscoa (este ano, a 16 de Abril), onde vamos celebrar a vida de Jesus entregue por todos e reavida pela ressurreição. Fátima, 2006 frei Lopes Morgado


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