Chamou-me a atenção que as crianças hoje vestiam diferente. Roupas novas, cheios de cor, limpinhas. Dirigia-me da nossa casa da comunidade para a capela. O dia era importante para mim. Verdadeiramente havia algo distinto no ar. Era dia de Natal. Pela primeira vez iria presidir à Eucaristia na capela central da nossa missão de Kacheliba… confesso estar um pouco nervoso. Não domino ainda a língua local, o swahili. E devia presidir à Eucaristia. E logo no dia de Natal com a capela a abarrotar de gente…
No dia anterior, noite de Natal, tinha ido com o meu colega, P. Hubert, celebrar a vigília na comunidade de Kodich, uma das capelas mais antigas da missão. Não fica muito longe. Cerca de 25km do centro de Kacheliba. Porém, a noite já caída na estrada de terra batida, exigia maior cuidado na condução. A sombra da luz do carro ocultava por vezes autênticas crateras na picada. Mas nada do outro mundo. Tínhamos sim de ter cuidado com o casal que levávamos connosco. É da praxe. Todas as vezes que saímos a algum lugar há sempre gente a pedir uma boleia. Desta vez levávamos connosco um casal que regressava à sua aldeia, depois de ter estado todo o dia no centro de saúde de Kacheliba. O costume - a doença mais comum nestas terras: malária com gastroenterites. A primeira devido ao calor que é uma autêntica incubadora para a proliferação dos mosquitos. A segunda devido à falta de água potável. E estamos só no início da época seca. A água que muitas vezes conseguem arranjar é retirada de buracos feitos nos leitos dos rios ou nos charcos que armazenam a água das últimas chuvas caídas já há mais de mês e meio.
Na bagagem levávamos também um elemento indispensável para a noite: um bidão com algum gasóleo para o gerador de energia da capela. Na verdade, não há luz eléctrica por estas bandas. Esta capela, instalada no perímetro da escola primária construída pelos missionários há uns anos, tem um sistema eléctrico instalado que funciona a partir de um pequeno gerador. A noite ia ser longa. É que é da praxe, depois da vigília, todos se reunirem à volta da televisão da escola para ver um filme sobre a vida de Jesus. É a melhor prenda de Natal que todos podem ter, cristãos e não cristãos.
Chegámos à capela e já esperavam por nós. Obviamente, tudo às escuras. Uma pilha eléctrica aqui e ali. À meia-luz pareciam já estar na capela um bom número de pessoas à nossa espera. O que verificámos ser verdade, depois de alguns trabalhos para pôr o gerador a funcionar. Mas lá conseguimos com a ajuda do catequista.
A celebração estava marcada para as 8 da noite. Havia baptismos de 9 crianças, filhos de cristãos baptizados. Pelo menos um dos pais deve ser já baptizado. Porém, eram 8 e meia da noite e apenas uma mãe com o seu filhote para baptizar marcava presença. Tínhamos que esperar, como sempre, à boa maneira africana. Aqui a hora certa é sempre muito relativa: a hora certa é aquela em que se chega, não aquela que se combina!
Um dos problemas com que lidamos neste povo é o facto de os homens Pökot serem muito resistentes a aderir à prática cristã. De facto, o maior número de baptizados em toda a missão Pökot são mulher e os adolescentes/jovens que tenham recebido formação escolar. Por outro lado, alguns homens acabam por se casar tradicionalmente com mais que uma mulher, facto que os impede de receber o baptismo.
O meu colega, entretanto, aproveitou para confessar alguns cristãos já ali presentes. Ao mesmo tempo, na capela, já se iam afinando os cânticos para a celebração. A capela já estava com muita gente. Alguns cristãos chegados para celebrar o Natal do Deus Menino. Muitos outros chamados pela curiosidade do eco dos cânticos que se ensaiavam.
Quase às 10 da noite estava tudo a postos. Todas as mães ali estavam com os seus filhotes para serem baptizados. À 4ª chamada, por fim, já ali estavam todas. Pais, nem um sequer. Finalmente podíamos iniciar. O calor da noite fazia que o odor dentro da capela a abarrotar de gente fosse intenso. Sobretudo, um odor típico do povo Pökot, todos os dias a lidar com os animais. Não havia dúvida. Aqui respirava-se Pökot!
A celebração foi-se desenrolando sempre, porém, com aquilo a que costumo chamar o ambiente litúrgico africano. Isto é, sem muito preciosismo e atenção aos rituais por parte das pessoas. Muitas delas só participam na Eucaristia duas ou três vezes por ano. Não estão habituados à liturgia com os “pontos nos is”. É tudo bem mais natural e espontâneo. Na verdade, creio mesmo que se alguns liturgistas europeus aqui viessem teriam um ataque do coração, tal é o ambiente de muito à vontade com que as celebrações aqui se desenrolam. A maior parte dos participantes nestas celebrações maiores não são sequer cristãos. Por isso, entram e saem quando muito bem lhes apetece. Ou então o bebé que começa a chorar e a mãezinha dá-lhe de imediato a chupeta africana: o peito a mamar! Sem pejo e com toda a naturalidade.
É chegada a hora do baptismo. Explicamos os ritos, os sinais, os gestos de todo o sacramento. Levámos a água connosco num pequeno bidão de plástico. A bacia é também levada pelo missionário. Não há pia baptismal. A concha para o baptismo, é a melhor e mais natural, aquela que Deus criou: as mãos do sacerdote. Sente-se a alegria no ar, expressa no entusiasmo com que todos na capela cantam o hino de agradecimento ao Senhor por mais estes dons sobre os seus filhos Pökot.
Entretanto a luz apaga-se. O gerador deixou de trabalhar. Tudo às escuras. “Eu vou ver o que se passa, Hubert!” – disse eu ao meu colega que presidia à celebração. Tirei a minha estola e com a pilha que sempre trago “à mão de semear” fui com um dos catequistas presentes ver o que se passava. Alguém, por maroteira tinha desligado o gerador. O combustível que lhe tínhamos posto era impossível ter já terminado. Junto ao gerador, no meio da escuridão apenas quebrada pela ténue luz da pilha eléctrica, deparo-me com um guarda local, de klaschenikov em punho. “É o vigilante, sr. Padre! Não se preocupe!” – tranquilizava-me o catequista. Ele que, logo que se apercebeu que alguém tinha desligado o gerador por maldade, começou a gritar com o vigilante armado pela sua incompetência em não guardar bem o gerador e não deixar ninguém aproximar-se.
Voltámos à capela com o problema resolvido e com a eucaristia a prosseguir. Não houve mais incidentes até ao final da eucaristia. Apenas e só o ambiente do costume… sempre um burburinho aqui e ali, descontracção, muito à vontade e também muita alegria. No momento de acção de graças foram 3 os cânticos que se cantaram… acompanhados pela típica dança Pökot, Adongo. Uma espécie de saltos na vertical ao ritmo do canto. É tal a energia contagiante desta alegria que nem mesmo o padre pode deixar de bater as palmas e saltar com alegria.
A seguir à celebração seguia-se a sessão da meia noite, com o filme sobre o nascimento de Jesus recentemente saído aos ecrãs. Claro, em inglês. É mais uma vez o trabalho do catequista fazer a tradução para as pessoas ali sentadas, agora já no recreio da escola. Num ápice, os bancos da escola que antes tinham sido levados para a capela, aparecem agora no recreio da escola. Dezenas de pessoas ali ficam até bem de madrugada. Afinal, é noite de Natal, noite de alegria, noite diferente.
Ficámos com as pessoas por um tempo, mas era necessário regressar à missão. Aguardava-nos ainda cerca de 45 minutos de viagem pelas picadas Pökot sempre cheias de surpresas ao mais pequeno descuido. Eram já uma e meia da madrugada quando chegámos a Kacheliba.
No dia seguinte de manhã era o tempo de outras emoções. A primeira celebração em terra Pökot em língua swahili presidida por mim. O sonho de muitos anos de formação missionária. O sonho de qualquer missionário: trazer Jesus Eucaristia ao meio deste povo que caminha e é também amado pelo Deus Menino.
Festa que se preze em África não deve nunca começar à hora marcada! Com meia hora de atraso, às 10.30 da manhã, na capela principal da missão, iniciava-se a Eucaristia do dia de Natal. Sentia um nervoso miudinho. Mas tinha-me entregado nas mãos de Deus Pai, Töroröt Papo, como assim lhe chamamos em língua Pökot. E como por milagre, apenas iniciei a Eucaristia com o sinal da cruz, senti que já nada me fazia temer. Era o Deus Menino aquele que agora tomava a dianteira. Era Ele o festejado e o Senhor da Festa. Por isso deixei-me apenas ser instrumento do Seu Amor também por este povo Pökot na missão de Kacheliba. Estava seguro que assim, tudo iria correr bem.
E assim foi! Deus Menino Jesus também nasceu no coração do povo Pökot da missão de Kacheliba, Quénia.
P. Filipe Resende, mccj
Relatos da Missão em Kacheliba
North Pökot – Quénia
Foto: Momento da homilia na capela de Kacheliba – Natal 2008