Vaticano

O silêncio do Cristo da Paixão

Voz Portucalense
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Está patente ao público na Praça de São Pedro, na chamada Ala Carlos Magno, que liga a colunata de Bernini à basílica, uma Exposição de fotografias de Robert Hupka sobre a Pietà de Miguel Ângelo, esculpida pelo artista em 1499, com 24 anos apenas, a partir de um bloco único de mármore de Carrara. Pela primeira vez se apresenta em Roma, a dois passos do original (colocado à entrada da basílica), esta Mostra, já anteriormente organizada em Paris e noutras capitais europeias. As fotos são todas a preto e branco e remotam a 40 anos atrás, quando Paulo VI autorizou a apresentação da obra em Nova Iorque, no pavilhão da Santa Sé da Exposição Universal de 1964: o fotógrafo (austríaco de origem hebraica, naturalizado americano, falecido em 2001), teve então ocasião de recolher milhares de imagens, em diferentes momentos do dia e da noite, com diversas máquinas e variadíssimos pontos de vista (impressionante a insólita foto tirada do alto). Como revela amplamente esta revisitação da famosa estátua de Cristo repousando morto nos braços de Maria, a beleza formal do conjunto e a fria matéria utilizada em nada diminuem a capacidade expressiva dos rostos, das posições, das pregas das vestes. Como sempre acontece nas produções de verdadeiros génios, um grande e profundo silêncio rodeia esta obra, convidando ao recolhimento e à contemplação do mistério de Cristo sofredor e da participação de Maria na Paixão do seu divino Filho. A inspiração e a sublimidade da obra condensam-se numa extrema contenção e simplicidade, que a faz aparecer como um verdadeiro milagre, uma revelação que toca não só os sentidos mas a alma. É significativo o número de importantes obras de arte que têm como tema a Paixão de Cristo, não só na escultura e na pintura, mas também na música e na literatura, e até mesmo no teatro e no cinema. Na diversidade de cada forma de expressão e na multiplicidade de gosto e estilos, todas têm em comum – quando são de qualidade verdadeiramente superior – a capacidade de conduzir ao silêncio, ao recolhimento, de algum modo - diríamos - ao encontro com Deus. Ainda não há dois meses, foi executada aqui em Roma, no novo Auditório de Santa Cecília, a Paixão segundo S. João, de J. S. Bach, sob a direcção do tenor Peter Schreier, que cantava também a parte do Evangelista. Mais de duas mil pessoas seguiram, num silêncio literalmente religioso, esta sublime evocação das últimas horas da existência terrestre de Jesus, que tão bem exprime a humilhação extrema do Filho de Deus, Cordeiro imolado. A ninguém passou despercebida a comparticipação pessoal do maestro: a naturalidade e convicção com que cantou e dirigiu, sem qualquer ênfase ou afectação, revelavam um crente em perfeita sintonia com o espírito que animava o compositor de Lípsia na primeira execução da obra, na Semana Santa de 1724. Quando sucede o milagre da convergência de elevada qualidade artística com uma verdadeira espiritualidade, experimenta-se como que um estado de graça a que praticamente ninguém ficará alheio. Foi o que aconteceu na referida execução romana da obra de Bach, tanto os solistas (cantores e instrumentistas) como o coro e a orquestra e o próprio público se sentiram irmanados, em uníssono. Momentos como estes são por natureza raros e nada têm que ver com outro tipo de obras e propostas em que predomina a exterioridade, a desmesura e uma total falta de pudor na abordagem de personagens e factos que requerem outra delicadeza e respeito. Quando se tem a pretensão de estender a mão sobre o divino e de o comunicar pelas suas próprias forças, a resposta é a mesma de Jesus diante de um Herodes que pretendia divertir-se com o espectáculo de algum milagre do Rabbi da Galileia: a nobreza humilde de uma não-resposta. Reacção que representa, da parte de Deus e do seu Cristo, mais uma e definitiva expressão da misericórdia que convida a entrar na realidade do Mistério. É claro que a melhor das execuções de Bach não é uma celebração religiosa. Uma sala de concerto, como um cinema, não é uma igreja. Mas precisamente por isso, como não ficar perplexo quando um realizador cinematográfico se pretende investido da missão de dar agora a conhecer a verdadeira realidade de factos que os Evangelhos e a iconografia cristã de todos os tempos preferiram tratar com outro respeito e sobriedade? Estará mesmo convencido de que a crueza das imagens e das sequências consegue revelar o verdadeiro alcance salvífico dos acontecimentos referidos? Quais as representações que melhor conduzem ao conhecimento (contemplação) do Crucificado? A anónima e serena Cruz de São Damião que falou a S.Francisco? Os despojados frescos de Fra Angelico nas celas do seu convento de Florença? Os Cristos de Velasquez, de El Greco, de Rouault, ou o da película agora em exibição? Que tipo de cinema mais aproxima do Mistério cristão: Dreyer, Bresson, Pasolini, ou o Mel Gibson de Braveheart? Pacheco Gonçalves


Arte Sacra