“As casas são deles, para eles, governadas por eles, logo que atinjam dentro delas a idade do discernimento”
(Padre Américo – Pão dos Pobres, Vol. 4, pp. 310)
Os educadores, ao longo da História da Educação, nos mais diversos contextos, proclamaram nos seus discursos e intervenções práticas, ideias, realizaram acções, fizeram obras e publicaram textos de orientação para os educandos em formação. O padre Américo foi um desses educadores sublimes, ou aliás, um pedagogo intuitivo e do fazer, uma ‘voz incómoda’ no seu tempo, em prol dos necessitados e, especialmente, dos rapazes abandonados, marginalizados e carenciados. Dedicou parte da sua vida em transformar o ‘lixo da rua’, que recolhia, em ‘homens válidos para a vida’, através das armas que singelamente dispunha: o amor, o ambiente adequado e o sentido de família em autogoverno.
Como é óbvio não irei falar do livro, pois, deixarei ao Professor Antoni J. Colom e a todos os leitores essa apreciação e análise, mas gostaria de partilhar algumas ideias que neste momento me afloram ao pensamento e que, no fundo, pretendem colocar o Padre Américo como um dos grandes educadores portugueses do século XX (como afirmou E. Planchard) e as Casas do Gaiato como instituições especiais que têm contribuído e, infelizmente, continuam a contribuir para acolher, educar e formar para a vida muitos rapazes que andam ao ‘Deus-dará’, sem norte e, aqui (Casa do Gaiato do Tojal) encontram o sentido de vida, um lar e a dignidade para se integrarem na sociedade.
Esta minha decisão de não falar do livro segue aquela afirmação do Padre Américo (Doutrina, Vol. 3, p. 142) “ Não há escritor que tenha o poder de convidar à meditação. Tudo quanto sai do homem, enquanto homem, é igual à sua natureza. Aonde vamos então buscar a razão deste fenómeno? Temos de ir à Obra da Rua. Às Casas do Gaiato e sobre elas observar e meditar”.
Esta também é a minha proposta que todos os educadores observem e reflictam o que vêm nestas Casas e na Obra da Rua.
É bem verdade que os que nos dedicamos, como eu, a formar futuros educadores e professores, temos o costume de recorrer aos compêndios, aos livros para neles encontrarmos o guia das nossas acções, mas devemos ter em conta uma das afirmações do Padre Américo: “Ora nós temos por costume fazer compêndios e ensinar por eles; e o certo é que tanto mais se erra quanto mais nos afastamos do natural”.
Para o Padre Américo, a arte de educar os rapazes não estava em dizer-lhes o que deviam fazer, ou como deviam fazer, mas em levá-los ao ponto em que eles mesmos tomassem essas decisões, isto é, adquirissem o sentido de responsabilidade e a confiança nas suas possibilidades. Havia que educá-los num ambiente estimulante, em família, em liberdade, no valor da descoberta de si mesmo (no que tinham de bom, acreditar nas suas potencialidades), na promoção individual e na necessidade de cultivarem valores adequados a serem pessoas dignas e, assim pôs em marcha o seu projecto educativo.
Tal como o P.e Edward J. Flanagan sabia que não há rapazes maus. Um rapaz pode ser menos bem dotado, mas em caso algum é mau por natureza, nem veio ao mundo só para ser mau (ambientalismo pedagógico). Ao transviar-se, a culpa será do mau ambiente que o envolve, da educação errada e dos maus exemplos que aprendeu. O Padre Américo e as Casas do Gaiato dão essa chance ao rapaz, oferecendo-lhes amor e uma orientação, pois um jovem feliz é um rapaz bom. Tal como J.J.Rousseau incutia no rapaz que fizesse o contrário do usual para depois observar como sempre faziam o bem, também os educadores nas Casas têm essa intenção educativa e pedagógica.
Foi nesse contexto de amor pedagógico, que ele respeitou a infância e a juventude e pedia aos educadores que não se apressassem em julgá-la bem ou mal ‘Deixai a natureza agir durante muito tempo…’ O tempo necessário para serem homens dignos e válidos pessoal e socialmente, pois, tal como E. Kant, ‘O homem só pode tornar-se homem pela educação’, isto é ‘aprendendo a fazer’ (P.e Américo, Doutrina, 3.º Vol. p. 171-175). O ponto de partida do seu método, tal como em S. João Bosco, está na ilimitada confiança nos rapazes e em encontrar neles o ponto receptivo para o bem: “Vocês podem fazer o que quiserem, para mim, basta que não façam o mal’. É que o amor e o ambiente em família eram e são o melhor ingrediente desse método e a forma é a alegria interior que os rapazes manifestam no quotidiano.
O projecto educativo do Padre Américo foi e é uma estratégia de educação e de formação de rapazes, caracterizando-se pela realização de um plano de trabalho, cujos objectivos são fazer de cada um deles um homem, capacitando-os para a vida – adaptação pessoal e social. São as actividades previamente determinadas nas Casas do Gaiato, que têm essa intencionalidade de concretizar a missão de educar, e os educadores de orientarem voluntariamente os procedimentos e a motivação de cada ‘gaiato’.
De facto, o projecto educativo do padre Américo foi e é ainda o processo de abrir o caminho para um futuro melhor nos rapazes que entram nestas comunidades em família.
Todos nós nos interrogamos como é esse projecto de transformação pelo ambiente, pelo amor e pela liberdade responsável, de fazer de um rapaz carenciado e com grandes défices num homem válido, digno e competente.
O projecto educativo de cada Casa do Gaiato, apesar de cada uma delas ter a sua cultura própria de formação, está subjacente aos ideais da Obra da Rua e plasmado em cada Casa no somatório de todos os projectos de vida de cada um dos rapazes que nelas vivem. A sua função é o de fazer que o ‘aprender’ seja activo, que os saberes e as habilidades sejam as necessárias para a sua inserção na sociedade.
Na verdade, o Padre Américo propõe, depois de se aproximar, ver, observar, sentir e intervir na realidade onde se encontravam esses seres necessitados, ansiosos de afecto, de confiança, de liberdade e de saber, um programa, princípios educativos que integram: a intenção (acolhimento em família), a preparação (educar para a vida) e a execução e a apreciação das actividades que realizam (o que são capazes de fazer, capacitação do aprendido).
Trata-se de um projecto com sentido de e para a vida. Estes gaiatos iniciados na realidade concreta por eles próprios parecem dizer-nos que a finalidade do projecto educativo é o viver para viver, viver para conviver e viver para descobrir (‘deixar os rapazes aprenderem e os educadores aprenderem com eles’).
A pedagogia do Padre Américo e das Casas do Gaiato não é confessional, a sua doutrina educativa tem objectivos católicos, daí ser uma pedagogia católica (situada e activa) apoiada em factores fundamentais e fundamentantes, factores condicionantes e construtivos na mudança pessoal e social do rapaz. Contudo, destacamos três princípios metodológicos básicos:
a.)- despertar as actividades dos rapazes, utilizando como meios educativos estimulantes o ambiente envolvente, a convivência comunitária em autogoverno, o diálogo, a amizade e a afectividade.
b.)- promoção da auto-educação e da auto-realização do rapaz como pessoa, colocando ao seu dispor os recursos adequados à sua formação pessoal, social e profissional – aprender a aprender na e para a vida. Cada gaiato esforça-se e aproveita as oportunidades, mas depende dele realizar e concretizar essa educação e formação.
c.)- a disciplina nasce da liberdade, do sentido da responsabilidade, da capacidade interior de cada rapaz. O ambiente envolvente físico-natural e comunitário são o ingrediente terapêutico. Os educadores, como bons ‘jardineiros’ no sentido de Santo Tomás de Aquino, mantêm-se num segundo plano, oferecendo e facilitando os meios adequados para que cada gaiato se faça homem.
Padre Américo não foi um sistematizador, foi um intuitivo, um prático do ‘saber fazer’, um construtor na própria realidade educacional, conhecendo os rapazes e propondo-lhes metas para se valerem por eles próprios.
Finalmente, lembro, pelo menos quatro ideias pedagógicas de orientação para os educadores de hoje e, certamente, para os de amanhã, que foram legadas pelo Padre Américo enquadradas na sua concepção socio-pedagógica:
1.- O encontro directo do educador com os alunos, o diálogo com eles (pedagogia do encontro). Os caminhos não existem para olhar ou descrever, mas para caminhar, para fazer algo, já que o importante é o aluno (rapaz) com ele próprio e com os ‘outros’ (pedagogia da alteridade);
2.- Em todas as acções do P.e Américo e no Projecto Educativo das Casas e dos Lares do Gaiato a educação é coisa de Deus. O educador só consegue ter êxito no abrir-se e abrir os outros para o que é criativo, isto é, quando lhe permite experimentar a sua simpatia/empatia, quando oferece a sua confiança de modo que o outro sinta que se pode educar, encontrar o ‘caminho’ (o projecto de vida).
Se um professor só se encontra com os alunos em determinadas horas para instruí-los, sem conviver com eles em outras ocasiões, sem partilhar com eles a multiplicidade dos dias, só excepcionalmente conseguirá um efeito construtivo.
3.- A liberdade no sentido de independência, de autonomia (as Casas e os Lares têm o regime de ‘portas abertas’), o sentido da responsabilidade (disciplina interior livremente assumida), as relações de convivência (pedagogia das relações) e a alegria e felicidade (sensação de estar bem, de equilíbrio). Nunca os educadores devem desesperar de uma criança/rapaz, mesmo quando parece fazer nenhum progresso ou ser lento e custoso a sua aprendizagem. O que nos deve desesperar é quando as crianças ou os alunos não recebem nenhuma oportunidade para viverem, para se educarem, terem uma família e um destina e, principalmente serem felizes.
Ernesto Candeias Martins