Dossier

A Modernidade e a Espiritualidade

Adriano Moreira
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Adriano Moreira

A paz é um valor permanente na doutrinação da Igreja, e a presença de teólogos-juristas na formulação do direito internacional que visa protegê-la, enriquece a narrativa de um trajeto que teve a sua mais grave ameaça, e mudança de paradigma, na submissão e uso das armas de destruição maciça.

Esta circunstância levou analistas a proclamar que a humanidade, depois disso, tinha que escolher entre continuar a viver ou morrer, mas não faltou o ensinamento do magistério católico de que a miséria, a distinção entre povos afluentes e consumistas, e povos que habitavam o que foi chamado a geografia da fome, era uma ameaça à paz de equivalente gravidade. Por isso Paulo VI, na memorável intervenção na Assembleia Geral da ONU, proclamou que o desenvolvimento sustentado era o novo nome da paz. Infelizmente, se o acordo dos Estados levou a sintetizar, nos chamados Objetivos do Milénio, as respostas àquele paradigma, o certo é que os desvios das promessas se agravam, que a miséria alastra e aprofunda-se em muitas regiões do mundo, que a guerra lhes serve frequentemente de moldura, que a chamada privatização da guerra agravou severamente o domínio do complexo militar-industrial que explora a verdadeira anarquia em que se vive.

A própria Europa, que construiu o Império Euromundista, destruído pelas guerras civis de 1914-1918 e 1939-1945, a que chamou mundiais, está hoje atingida pela distinção entre povos ricos e povos pobres, vê o Mediterrâneo em turbilhão preocupante, verifica que a fronteira da pobreza ultrapassou esse Mar euroafricano para abranger muitos países a norte, sofre os efeitos da crise económica e financeira mundial, acontece-lhe que a sociedade civil se mostra afetada pela quebra de confiança nos governos, e de esperança no futuro. Se a pobreza e as armas de destruição maciça são ameaças equivalentes para a catástrofe que é sempre a guerra, a qual, como pregou Vieira, nem Deus nos altares deixa seguro, a crise de valores que atingiu todo o ocidente, o qual evoluiu para um credo de mercado que colocou o preço das coisas no lugar do valor das coisas, e se a catastrófica crise financeira e económica mundial é muito o resultado dessa condição, o certo é que esta modernidade, que marca a entrada no terceiro milénio, não extinguiu o facto religioso nem a busca da espiritualidade.

Como escreveu Jean Paul Guetny, “os europeus, sobretudo os franceses, viveram sob um verdadeiro mito: as religiões iriam extinguir-se lentamente. Era o preço a pagar pela modernidade. A proeminência da razão e o desenvolvimento das ciências dariam origem a um humanismo secular.

Há um século e meio, o filósofo Augusto Conte formulava esta profecia: “estou convencido de que, antes do ano 1860, pregarei o positivismo em Notre-Dame (Paris) como a única religião real e completa.” A realidade que reconhece, e que desapontaria Comte, é que “é verdade que um quarto dos nossos contemporâneos recusa alinhar sob uma bandeira religiosa. Mas não são todos assumidos. E três habitantes do planeta sobre quatro reivindicam, mais ou menos, uma pertença religiosa”. Digamos que se diminui a declaração de pertença, cresce todavia o apelo à transcendência.

Seguramente, a falta de confiança nas governanças políticas existentes, a desordem mundial, o aprofundamento da distância entre sociedades ricas e sociedades pobres, o recurso à violência da guerra e também na vida das sociedades civis, fazem com que a esperança se dirija orando à transcendência. E sem dúvida, a resposta consistente da Igreja, pela voz dos Papas humanistas do século XX, designadamente João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, e agora Bento XVI, falando aos povos quando estes enfrentam globalmente a tormenta desencadeada por governanças, formais ou informais, que colocaram os valores instrumentais acima dos valores essenciais da verdade, da justiça, do amor e da paz, desde o Concilio que faz da paz o paradigma de um futuro a construir, como agora proclama Bento XVI, onde seja reconhecida “a inviolabilidade própria de cada pessoa”.

Adriano Moreira, presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, presidente do Conselho Geral da Universidade Técnica de Lisboa

 



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