Dossier

Itinerários crentes na cidade

Alfredo Teixeira
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“Deus não habita em morada feita pela mão dos homens” (Act 7, 48) 1. O momento em que vivemos é, provavelmente, aquele em que mais se complexificou a nossa relação com o território. De modos diversos, em diferentes disciplinas, fala-se do fim do tempo da territorialidade local compacta, tempo em que era possível encontrar imediatamente para cada pessoa, objecto ou acontecimento uma rede estável de significação referida a um lugar. Se perduram as relações de proximidade, as pequenas alianças do quotidiano que criam solidariedades locais, também é certo que nunca como hoje se fez a experiência de multiplicação das pertenças (quem de nós faz hoje a experiência de pertencer a um lugar?). Dir-se-ia que o fenómeno da urbanização moderna colocou os indivíduos no contexto de um a experiência de deslocação da existência. As culturas urbanas são, hoje, terreno de complexidade. Aí se investe na gestão daquilo que provavelmente será a qualidade mais proeminente das culturas urbanas - o pluralismo. Hoje, a cidade não transporta apenas a coexistência de tempos diferentes (as zonas históricas, os monumentos, as zonas de expansão industrial, as formas arquitectónicas mais recentes), ela exibe também uma configuração multicultural que é consequência das relações que se estabelecem entre os “nativos” e os “migrantes”, entre os antigos e os novos moradores. As culturas urbanas são ainda marcadas pela emergência do espaço público, qualidade que parece ter sofrido o impacto da expansão dos meios que levam os bens culturais e o lazer ao espaço doméstico, facto que terá reduzido a necessidade de frequentar os lugares públicos da cidade. A essa realidade de clausura no espaço doméstico parece corresponder também a necessidade de fugir à cidade representada negativamente como o lugar da violência e da poluição (tenham-se em conta as práticas de fim-de-semana, a procura de uma segunda-casa ou o imaginário nostálgico em torno das civilidades rurais). 2. As religiões devem ser vistas, entre outros ângulos, como modos de habitar o mundo. A cultura bíblica pode ser lida sob o ponto de vista da sua influência na ecologia humana, sobretudo na medida em que ela parece ter dado uma proeminência ao tempo em detrimento do espaço - Michel de Certeau falava a este propósito do “sem lugar da fé”. Isto não evitou, no entanto, que as Igrejas, na sua história, não tivessem que lidar com essa espessura humana que é o território. Sabemos como a paisagem religiosa se transformou profundamente quando começou esse enorme movimento de populações do “campo” para “cidade”, particularmente nos século XIX e XX. A Igreja católica reagiu a essas transformações em várias frentes: multiplicou as paróquias dentro da cidade, com o intuito de enquadrar numa rede de proximidade os crentes; deu um novo impulso a outras formas de inscrição institucional no espaço, como a construção de colégios, universidades, hospitais, etc., e suas capelanias; mas também favoreceu formas de enquadramento não limitadas às bases territoriais, autorizando a constituição de redes de associativismo confessional (associações profissionais, de lazer, de intervenção social) e de movimentos, como a Acção Católica, que se adaptavam bem ao princípio de mobilidade das sociedades modernas. Na segunda metade do século XX tornaram-se cada vez mais evidentes os efeitos de erosão dos modos de vida da metrópole urbana nas formas de socialidade religiosa marcadas pelos ritmos da comunidade camponesa. Gabriel Le Bras, sociólogo do catolicismo, escrevia em 1958: “em cada 100 rurais que se estabelecem em Paris, há perto de 90 que, mal saiem da estação de Montparnasse, deixam de ser praticantes”. Não admira pois que em algum discurso popular e eclesiástico tenham abundado as referências à cidade como “inimiga da fé”. Os estudos que nos anos 80 foram realizados sobre estes fenómenos glosaram frequentemente o tema do desmoronamento da “civilização paroquial”, que em traços largos seria o “fim” dessa identificação entre a paróquia como circunscrição eclesiástica e a comunidade como forma social. Recorde-se que nessa “civilização paroquial”, a igreja era o dispositivo central do território, muitas vezes um centro geográfico, mas sobretudo um centro simbólico, um emblema central da representação da identidade da população enquanto comunidade moral; a relação entre o pároco e os crentes estabelecia-se no quadro de uma proximidade espacial, proximidade que permitia o acesso fácil aos ritos, à pregação e à instrução religiosa e, assim, a manutenção de uma linhagem crente continuamente celebrada. 3. As primeiras reflexões críticas sobre os modos de vida urbanos na metrópole moderna viram na mobilidade uma das chaves essenciais para a sua compreensão. G. Simmel pensou essa mobilidade a partir da figura do estrangeiro. Não esse viajante que hoje chega para partir amanhã, mas sim esse errante que chega hoje e que ficará amanhã sem prescindir da liberdade de ir e vir. Essa mobilidade deve poder relacionar-se com essa arte de combinar crenças, essa mestiçagem dos deuses, mobilidade do imaginário que não dispensa as referências à memória religiosa em que os indivíduos foram socializados, mas as adapta àquilo que os sociólogos chamam “estilos de vida”. Nos EUA, por exemplo, de acordo com os estudos conhecidos, é frequente que evangélicos e não evangélicos se desloquem por Igrejas diferentes até que se encontre uma “congregação” que se adeque aos seus gostos, às suas questões não resolvidas, ao seu modo de busca espiritual. Esses estudos mostram que aquilo que eles procuram não são apenas, nem em primeiro lugar, propostas acerca de uma vida futura, ou ofertas de uma moralidade construída, mas antes programas que se dirijam às suas necessidades pessoais e os orientem num estilo de vida que fortaleça o seu próprio Eu. Este contexto permitiu o florescimento de um “mercado da espiritualidade” (livrarias, grupos de auto-ajuda, centros de retiro, medicina alternativa, seminários de espiritualidade, oficinas de espiritualidade nos negócios e nas corporações, e agora o ciber-espaço), que conduziu à reestruturação dos estilos e práticas espirituais a partir da oferta disponível. As paróquias foram envolvidas nessa imensa lógica de mercado, na medida em que são procuradas de acordo com seu estilo de acolhimento, o “ar” das suas celebrações, a competência da sua oferta de formação, o discurso dos seus padres, etc. - numa palavra, a “qualidade”. Na cidade, há paróquias que são reconhecidas pela sua extraordinária capacidade de oferta de bens religiosos ou pela competência com que o fazem, rasto de uma terciarização generalizada dos modos de vida. Nesse contexto, lança-se mão da dinâmica dos pequenos grupos para criar uma “Igreja de opções”, oferecendo um menu de respostas várias às inquietações religiosas ou às demandas de manutenção da identidade religiosa, abrindo às pessoas a possibilidade de encontrar um nicho onde possam comunicar e partilhar com os outros. O reforço e a multiplicação de diferentes regimes comunitários dentro de uma comunidade de referência (comunidade de comunidades) aproxima-se paradoxalmente de um dos sentidos do moderno individualismo religioso, uma vez que esse movimento traduz a vontade do sujeito crente se auto-implicar na economia de salvação que a instituição pretende servir, e mostra também que esse individualismo não se verte numa completa privatização do religioso. O nomadismo religioso contemporâneo corresponde à vontade de celebrar a subjectividade e o acontecimento; mas, porque a errância só é possível dentro de um quadro mínimo de referências, subsiste a nostalgia da comunidade (imaginada ou praticada). 4. As comunidades cristãs na cidade vivem, hoje, o desafio de traduzir nesse pluralismo dos modos de vida essa memória que as funda: ser assembleia convocada e reunida eucaristicamente num lugar - isso mesmo que “igreja” significa na sua acepção primitiva. Penso que a resposta a esse desafio não deverá perder de vista que a cidade, marcada por transacções complexas, é também espaço de circulação de sentido - antes de mais, o sentido do que é viver na cidade, a urbanidade. Estão as Igrejas preparadas para serem, elas próprias, interlocutoras nessa descoberta do que possa ser o sentido de viver na cidade? Isto não implica uma renúncia às convições próprias com receio das etiquetas do fundamentalismo, implica sim, a meu ver, uma forma de inscrição na cena pública que aceite a disponibilidade do diálogo com outros sistemas de convicções - não há espaço público sem a construção de compromissos. Mas implica também a abertura de “espaços públicos” dentro das Igrejas, ou seja, espaços onde aceitem ser interpeladas pelas dúvidas e hesitações dos outros, e onde elas possam dizer das suas razões. Neste contexto, as Igrejas poderão contribuir para a tradução política de algo que faz parte das suas competências e do seu património espiritual - “fazer comunhão”.


Igreja na Cidade