Dossier

Perspectivas Actuais da Missão

Frei José Nunes
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(…) A missão ad gentes é, pois, algo de específico, não se deve confundir sequer com a ‘nova evangelização’ (apesar de as duas terem semelhanças entre si…). Quais serão, então, as notas específicas da missão ad gentes? Creio que as podemos sintetizar em quatro: Referência ao negativo – a palavra ‘negativo’ não é aqui empregue em sentido moral ou pejorativo. Na missão há esta referência ao ‘negativo’ no sentido de que se está na presença de não-cristãos, não baptizados, não conhecedores de Jesus Cristo. Portanto, não se trata apenas de re-iniciar alguém à fé, não é apenas um neo-catecumenato; é levar o kerigma aos que têm estado à margem ou independentes do fenómeno cristão configurado em Igreja (Cfr A.Seumois, Fé,religiões e culturas, Ed.Missões, Cucujães 1997, p.24). Espiritualidade do envio e do êxodo – a missão implica agentes, missionários. E aqueles que se enfrentam ao mundo não-cristãos são, de facto, os autenticamente missionários. Dão um salto no desconhecido, quer dum ponto de vista cultural e ideológico quer, quase sempre, dum ponto de vista geográfico. Há um deixar qualquer coisa, há um ‘partir’, uma deslocação. Não esqueçamos, aliás, a etimologia da palavra missão: ‘mittere’, isto é, enviar. E tudo isto reclama um carisma correspondente. O carisma missionário é dado a toda a comunidade eclesial, mas condensa-se nesta ou naquela pessoa concreta que sente a chamada à missão e generosamente a acolhe. Pregação explícita – é verdade que muitos pensam que a proclamação explícita do Evangelho é algo já superado, já que vivemos em ambiente dominado pela ortopraxis, a liberdade e a permissividade. Há quem pense que toda a tarefa pastoral deve reduzir-se a dar um testemunho de vida autêntica e que a pregação directa do Evangelho até poderia constituir uma violação da liberdade das consciências… Já na E.N. o Papa Paulo VI equacionava esta questão ao falar da importância da linguagem testemunhal (n.21) mas sem esquecer que «a pregação permanece sempre como algo de indispensável» (n.42). A verdade é que diante dum mundo ou pessoas não-cristãs o anúncio explícito da palavra de Deus é indispensável, pois ninguém se consegue evange-lizar a si mesmo se não conhece o próprio Evangelho e, sobretudo, o que a missão procura é que as pessoas ou as culturas se encontrem e confrontem, elas mesmas, com Jesus e o seu Evangelho, e não que se liguem afectivamente a um qualquer missionário que lhes dá um exemplo de vida cativante e edificante… A auto-realização eclesial – a concre-tização deste processo missionário é a conversão e entrada na comunidade, muitas vezes com a constituição de uma Igreja local que não é apenas mais uma parte do todo (Igreja universal) mas sim um novo acontecimento e um novo marco na História da Salvação. E a tarefa destes novos convertidos e destas novas Igrejas não é apenas a da edificação da vida comunitária ‘ad intra’, mas sim a penetração do Evangelho em toda a realidade sócio-cultural. O processo missionário não é, pois, apenas um momento, mas sim um longo processo de incu-lturação. (…) Impõe-se, neste momento, a abordagem, ainda que sucinta, de uma outra vertente da missionologia: quais as metodologias missionárias hoje propostas pela Igreja ou, dito de outra forma, quais as grandes perspectivas para a praxis missionária na actualidade? Creio que a Missão é hoje entendida e proposta a partir de três grandes orientações: a inculturação, a libertação ou promoção humana, o diálogo inter-religioso. Trata-se, respectivamente, da relação do Evangelho com as culturas, com as realidades sócio-político-económicas, com as grandes tradições religiosas. Aliás, são estas três perspectivas as enunciadas por J.Paulo II na Redemptoris Missio (nn.52-54 para a inculturação; nn.55-57 para o diálogo inter-religioso; nn.58-59 para o desenvolvimento e promoção humana). - Inculturação – diz respeito a uma missão evangelizadora que respeita profundamente as culturas sem, por outro lado, abdicar da radical novidade do Evangelho. Há como que um dar e receber: o Evangelho de Jesus é ‘boa novidade’ e pedirá a purificação de todas as crenças, mentalidades, usos e costumes, leis e instituições de determinada cultura; esta, por sua vez, oferecerá à vida cristã de determinada Igreja local todos os elementos para a vivência e expressão da fé cristã. O objectivo do processo de inculturação será, pois, o aparecimento de diversos cristianismos, cada qual, na unidade da mesma fé e na comunhão universal, a viver originalmente e com características próprias o Evangelho comum a todos os cristãos. - Diálogo inter-religioso – face às grandes tradições religiosas da humanidade, a Igreja abandonou há muito a perspectiva excluente e condenatória do axioma ‘fora da Igreja não há salvação’. Propõe-se um diálogo em três grandes vertentes: de vida e oração, de colaboração, doutrinal. A Igreja não se demite de propor o Evangelho e o Evangelho todo aos crentes de outras religiões, mas fá-lo como proposta dialogante e na convicção de que também ela, Igreja, tem muito a receber da espiritualidade e testemunho de vida desses seus irmãos que professam outros credos. - Libertação – a missão que Jesus confiou aos seus discípulos, sabemo-lo bem, não foi apenas de ordem cultual ou sacramental: pregar a Boa Nova e baptizar não fazem esquecer a necessidade de curar os doentes e expulsar os demónios. Já a E.N. lembrava que «entre evangelização e promoção humana – desenvolvimento e libertação – existem laços profundos» (n.31) e, nesse sentido, a missão da Igreja não há-de ser desempenhada apenas em estilo assistencial-caritativo, mas tendo «como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos das pessoas e menos opressivas e menos escraviza-doras» (n.36). Não será de esquecer, porém, uma correcção importante a todas estas perspectivas e que vem sendo assinalada e reclamada por alguns teólogos da missão: a necessidade de a missão ad gentes ser entendida como ‘profecia’, isto é, como anúncio profético e atenção crítica permanente face a todas as possíveis cedências em que possam cair quer a inculturação, quer o diálogo inter-religioso, quer os planos de reforma social. De facto, de que adiantaria uma inculturação em que o respeito por uma cultura particular conduzisse ao confronto tribal com outras culturas particulares? De que adiantaria o diálogo inter-religioso se se tornasse irrelevante para a erradicação dos fundamentalis-mos? De que adiantariam os discursos e ajudas aos países pobres e sub-desenvolvidos se o fosso entre ricos e pobres não parasse de aumentar? Eis por que a missão tem de ser, necessariamente, profecia, reserva de sentido crítico e questio-nante de tudo e todos, em qualquer momento e qualquer lugar. Profecia que, em palavras de Michel Amaladoss, levará a Igreja e os missionários em concreto a serem muitas vezes incompreendidos e politicamente pouco correctos: num mundo post-moderno, «ser contra-cultural é ser profético» (Cfr Michel Amaladoss, Mission in a post-modern world. A call to be counter-cultural, Mission Studies 13/1996, pp.68-79. Esta perspectiva já começara a ser enunciada pelo mesmo autor em ‘La mission comme prophétie’, Spiritus 33 (1992), pp.263-275). (…) Sem prescindir da importância – quantitativa e qualitativa – da tarefa missionária levada a cabo pelos membros de numerosos institutos religiosos missionários, masculinos e femininos, e muitas vezes partindo dos espaços das velhas cristandades para os continentes dos novos mundos (o que não só continua a justificar-se como é uma imperiosa necessidade), a verdade é que tanto a reflexão teológica como a prática missionária são hoje marcadas por duas notas relativamente recentes: - em primeiro lugar, a consciência de que os sujeitos principais da missão – respondendo aos impulsos do Espírito de Deus – são as Igrejas locais no seu conjunto (cfr RM 62-64), razão pela qual não deve centrar-se exclusivamente esta questão na figura do tradicional e mais individual missionário que a história da Igreja sempre conheceu. A missão é da responsabilidade de toda a Igreja, a qual se entende como Povo de Deus no mundo e apelando todo o evangelizado a evangelizar (EN 24). E se o Concílio Vat.II sublinhou magnificamente e em muitos lugares a realidade do sacerdócio comum dos fiéis e a responsabilidade missionária de todo o cristão (por exemplo: LG 12-14, 34-36; AG 20-21…), toda essa perspectiva ganhou concretização extraordinária na figura do voluntariado missionário ou do laicado missionário, hoje visível em todo o mundo (cfr RM 71-72) e que em Portugal conta com algumas dezenas de entidades bem activas e florescentes; - em segundo lugar, a consciência de que a missão não pode nem deve ser levada a cabo apenas no sentido das velhas cristandades para o das jovens Igrejas ou continentes menos evangelizados, mas que é não só verificável como salutar uma circulação, cada vez maior, entre todas as Igrejas locais em solidária partilha de animação missionária. Isso faz com que as jovens Igrejas sejam chamadas, quanto antes, à missão universal (cfr AG 20 e RM 62) e isso faz também com que sejam valorizados todos os agentes missionários das comunidades cristãs (a RM 73-74 fala da obra dos catequistas e de muitos outros ministérios de evangeli-zação missionária). Supera-se assim, naturalmente, a antiga querela sobre quem estava capacitado para a tarefa missionária: se os estrangeiros ou os autóctones, se os clérigos ou os leigos, etc. Afinal, é toda a comunidade local e com todas as suas forças vivas que é chamada à missão.(…) Fr. José Nunes,op (Da intervenção no Simpósio a Missionação)


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