Entrevistas

«A autenticidade é o remédio e a autenticidade é o que está nas palavras do Papa»

Paulo Rocha
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Adriano Moreira comenta primeiros nove meses de pontificado de Francisco

Agência Ecclesia (AE) - Ficou muito agradavelmente surpreendido pela eleição deste Papa, pela escolha do nome Francisco. Esse fascínio perdurou nestes meses de pontificado?

Adriano Moreira (AM) – Sem dúvida nenhuma. Fiquei mais do que satisfeito, fiquei emocionado porque nunca tinha acontecido na história da Igreja e o São Francisco [de Assis] é uma boa inspiração para a época que estamos a viver. E depois está muito de acordo certamente, se não ele não escolheria o nome, com a sua experiência de pastor e de bispo, depois de cardeal porque cresceu e certamente foi apurando, apoiado na sua fé, a compreensão do mundo em que vivia. Ele viveu num dos mundos pobres que nós temos.

 

AE – É desde logo curioso como vindo do “fim do mundo”, como ele disse, as mensagens estão a chegar a todo o mundo. Esse fascínio inicial perdurou, o Papa foi comprovando nas mensagens, nos gestos…

AM – Até agora com certeza e espero que se acrescente mas gostava de insistir que ele cresceu num meio onde compreendeu a necessidade que há de dar efetividade a um principio que foi o Concílio que era a proeminência dos pobres. Recordo-me muito bem de ter até adotado isso como doutrina da democracia cristã em Portugal e na altura não foi considerado uma afirmação que merecesse grande atenção. Nós estávamos a caminho do neorriquismo que nos levou às circunstâncias em que estamos hoje mas naturalmente ele é da região onde nasceu a geografia da fome, que teve tanta importância. A região que criou tantas inquietações à Igreja com a teologia da libertação, por exemplo. Tudo expressões que chegaram a levar ao risco de haver uma dissidência. E ele foi criticado, atacado pelo país onde vive e manteve uma serenidade total perante a deturpação e até a invenção perante a imagem que criam atribuir-lhe. Recentemente foi traduzido para português o livro sobre a lista das pessoas que salvou ("A Lista de Bergoglio") e ele nunca fez referência a isso e nunca respondeu à deturpação.

É um homem que tem muita convicção e certeza da hierarquia dos valores e também da vocação que o chamou. Depois, ele faz uma coisa que é muito franciscana que é rezar pela conduta, os exemplos, proceder e mostrar-se de certa maneira que era um talento do São Francisco, o exemplo da simplicidade e da união das necessidades da população. Ele está a dar esse exemplo num período naturalmente muito difícil, em que a diminuição dos fiéis é enorme, há mesmo o risco de se tornar minoria na Europa em que vivemos e sobretudo numa época em que região que foi considerada a mais rica do mundo, influente, consumista, substituiu o credo dos valores pelo credo do mercado. Este é o combate que ele levantou e é um dos aspetos em que vai ser mais uma vez objeto, como é costume, de alguma reinterpretação do que diz e que não corresponde ao que efetivamente queria dizer. Mas ele é suficientemente experiente e com autoridade e visão suficiente para enfrentar esse risco também que as palavras porventura sejam deturpadas e hoje o risco é muito grande porque se os meios de comunicação decidem interpretar alguma afirmação, sobretudo original ou nova, que tenha sido feita o risco que se multipliquem os sentidos é muito grande. As palavras têm esta duplicidade, umas vezes são submissas e outras vezes são subversivas.

 

AE – A interpretação das palavras que o Papa diz nos seus discursos e documentos rapidamente chega a uma dupla perspetiva sobre elas. Ou são o essencial do Evangelho, a doutrina da Igreja de sempre, ou uma novidade muito grande que agora, o sucessor de São Pedro está a proclamar. Estaremos perante duas perspetivas que se opõem?

AM – Eu acho que não. Aquilo que está a acontecer é que o Papa Francisco está a compreender, e já compreendeu, que o mundo mudou. A grande parte das instituições que têm responsabilidades públicas ainda não assumiu a necessidade de rever a sua visão do mundo e da vida e acontece o mesmo com os partidos políticos.

 

AE – A Igreja Católica não tinha até este pontificado feito essa revisão?

AM – De algum modo já tinha feito, embora em algumas vezes com muita dificuldade, sobretudo com aqueles movimentos da América Latina em que passou grandes dificuldades para evitar a cisão que chegou a esperar-se mas progressivamente tem que enfrentar a mudança do mundo e não pensar que pode recolher-se a um convento a meditar em si própria e não na sociedade que espera por ela. Eu creio que temos neste momento, mesmo em Portugal, bispos com uma juventude e uma capacidade da visão da mudança do mundo que podem acompanhar com autenticidade a doutrinação do Papa Francisco. E, sobretudo dar valoração ao imperativo do Concílio da proeminência dos pobres em relação à Igreja.

Uma das coisas importantes que [o Papa] já se pronunciou diz respeito a um caso, tema fundamental em Portugal neste momento que é o Estado Social. Há alguns intérpretes apressados que julgam que o ES é caridade do Governo. O Estado Social são direitos que completam aquilo que foram as grandes declarações de direitos. Eu costumo dar como exemplo aos estudantes que a Declaração dos Direitos de Filadelfia, com as famosas palavras do Thomas Jefferson [terceiro presidente dos Estados Unidos da América], “todos os Homens nascem iguais e com igual direito à felicidade” mas as mulheres não, os índios não, os escravos não, os trabalhadores não, etc. Uma série de “nãos” que era necessário apagar e foi a Doutrina Social da Igreja, em convergência com o socialismo democrático, que criou aquilo que os franceses chamam “Le droit prestation”. É necessário a quem não tem mesmo ponto de partida satisfazer de alguma maneira o ponto de partida, é para isso que são os direitos prestação às pessoas e depois disso existe também a caridade e o amor ao próximo.

A preservação de uma coisa que considero fundamental é que a comunidade nacional seja de afetos porque sem eu ser comunidade de afetos que torna útil, exequível e obrigatório o exercício do amor ao próximo.

 

AE – O que dizer neste problema do Estado Social ao argumento que se repete muitas vezes de que “não há dinheiro”?

AM – Isso não impede que haja princípios. O Estado Social na Constituição Portuguesa é uma principiologia porque temos disposições que são imperativas mas têm princípios e que neste momento parecem ser uma das dificuldades do Executivo lidar com o Tribunal Constitucional (TC). Parece que algumas vezes têm dificuldade em compreender que o TC invoca princípios em vez de invocar uma disposição literal que esteja escrita. A principiologia que está na Constituição Portuguesa do ES diz respeito às possibilidades do Estado e por consequência podem as possibilidades diminuir mas os princípios não diminuem e, por isso, é completamente errado, a meu ver, crer entre outras coisas que se anunciam para a Constituição, a refundação do Estado que parece uma expressão exageradíssima mas é bom que apareça gente com ambição, é preciso que isto não desapareça da Constituição porque faz parte das conquistas ocidentais, das declarações de direitos ocidentais. E ai, espero que a doutrinação do Papa traga um grande fortalecimento a estes princípios, à manutenção dos princípios.

 

AE – Também numa afirmação que o Papa foi repetindo, na rejeição de uma economia de exclusão, nessa afirmação forte – “a economia mata”?

AM – Não sou economista, mas em todo o caso a ‘Escola de Chicago está’ sempre mais em vista. E não há dúvida que prestemos muita atenção às políticas inclusivas e exclusivas. As políticas exclusivas foram aconselhadas em países como o Chile, Argentina, Ceilão, etc, em lugares onde o exagero que leva ao cansaço, à fadiga tributária que destrói a classe média, que aumenta a pobreza, não concentre reação porque os regimes são organizados em termos tão autoritários que facilmente dominam essa situação e não podemos consentir nisso. Infelizmente a situação de Portugal neste momento dá impressão que essa política está ser desenvolvida e tem limites. Eu acho que é uma ocasião em que a doutrina da Igreja é fundamental e sobretudo porque começamos a ter manifestações da sociedade civil não enquadradas, nem por partidos nem por sindicatos, espontâneas. Não acredito em juízos de certeza nem de probabilidade, que acho uma audácia, mas este conjunto de manifestações leva-nos a pensar que a alternativa está à espera de uma oportunidade e a sociedade não vai ser a mesma.

Não se pode com segurança e até por respeito pelo direitos das pessoas estar a incitar a violência ou a imaginar que se tem um modelo para a sociedade civil que vai aparecer. Agora, não temos dúvidas que os sinais indicam que alguma coisa vai acontecer. A nossa incapacidade de saber obriga-nos a imaginar que o imprevisto está à espera de uma oportunidade e a esperança é que a mobilização da sociedade civil faça com que essa oportunidade corresponda a valores. E, ai está o problema da intervenção do Papa. O que aconteceu é que neste nosso Ocidente apareceu uma espécie de credo do mercado, põe os valores absolutamente de lado e esse credo é apontado como dando superioridade a valores instrumentais, como à eficácia porque Deus recompensará os melhores. Uma economia desta mata, como diz o Papa, e por consequência o que ele está a pedir é uma ética para a vida económica, mesmo para o mercado. Não é preciso ser revolucionário ou entender isso num sentido de apelo ou intervenção revolucionária para compreender que o mercado sem regras faz com o credo do mercado ponha de lado a escala dos valores. Julgo que essa é uma das debilidades muito grandes do Ocidente, é certamente uma razão a considerar na diminuição da influência da Igreja curiosamente numa época em que as estatísticas revelam o apelo crescente à transcendência. A autenticidade é o remédio e a autenticidade é o que está nas palavras do Papa.

 

AE – É um apelo à transcendência e não à instituição transcendente?

AM – Não tanto à instituição e isso não pode ser ignorado mas há uma arma para isso indispensável que é o poder da palavra e eu acredito que o poder da palavra é capaz de ganhar à palavra do poder. Mais de uma vez aconteceu isso na sociedade e as modificações começaram por factos insignificantes quase inesperados.

 

AE – O que é que se pode esperar do Papa Francisco nessa desejável mudança?

AM - Penso que ele vai intransigentemente lutar para que o mercado seja condicionado por uma ética. A ética da parte da Igreja Católica não precisa de grandes discussões e explicações mas há um efeito mesmo na ordem política internacional que é importante. A ordem política internacional teve em suspenso com a guerra fria porque vivemos um ordem de pactos militares e isso acabou mas temos ainda a Organização das Nações Unidas e um Conselho Económico e Social que não foi chamado a avaliar a situação que é global e devia ser chamado. A própria Igreja tem uma grande importância porque é a primeira vez no mundo, na história conhecida, em que todas as áreas culturais falam livremente e a busca de paradigmas que abranjam essa globalidade é fundamental.

Penso que a palavra de Francisco faz falta para encontrar esse paradigma global que ainda não encontramos.

 

AE – Do que percebe e interpreta das análises sociais, a palavra do Papa é global? O seu discurso vindo do fim do mundo atingiu a força da globalidade?

AM – Ele ainda tem passos para dar porque neste momento, usando a linguagem dos juristas, recebeu uma herança e não foi a benefício de inventário e não vem só o ativo mas o passivo também. Ele está a dar grandes exemplos, no sentido de reformar o Vaticano e isso vai levar tempo.

 

AE – É o desafio maior do pontificado?

AM – Não sei se é o maior ou não, mas se temos um Papa emérito [Bento XVI] que dá o exemplo de declarar a sua fraqueza, que não é capaz, que o cargo e o encargo ultrapassam a sua capacidade é uma grande demonstração de coragem, dedicação mas ao mesmo tempo dá-nos sinal que a herança é pesada. Não vou sequer tentar determinar ou definir mas basta isto para ter a certeza que ele está a enfrentar uma herança pesadíssima dando o exemplo franciscano da simplicidade, da compreensão do povo, da pobreza que está a envolver tantas regiões do mundo e espero que a sua ação vá conseguindo repor uma escala de valores que consiga dominar o credo do mercado que está a ser dominante no mundo em que vivemos.

 

AE – Diante dessa necessidade de reforma, as palavras do Papa desafiam a uma desinstalação, ir às periferias. Podíamos pensar que se é para reformar vamos ao centro, ao Vaticano mas as ordens do Papa são outras. Começa por ai, pelas periferias?

AM – Ele não esquece que a sua palavra é dirigida ao Logos e que a prega a todas as criaturas. Ele não pode abandonar isso e basta o exemplo do antecessor, a fadiga, para pensar no fardo que ele assumiu e não se pode ter a certeza que a simples intervenção dele vai ser suficiente para repor os valores como desejaria. Os poucos meses de exercício fazem crescer a esperança de que as coisas possam voltar a subordinar-se aos valores, identificar não apenas o Ocidente mas que para além de tudo aquilo que erradamente também o Ocidente fez e praticou que possa ter influência. É por isso que as reuniões entre todas as religiões, a procura do paradigma comum é uma tarefa da maior importância e que não deve ser abandonada mas apoiada e aceitando a afirmação, que se vulgarizou, que se não houver paz entre as religiões não haverá paz no mundo.

 

AE – Numa metodologia jesuítica, e deste Papa Francisco, será que a centralidade de Jesus Cristo, a desinstalação, o anúncio, o ir às periferias e a rejeição da economia de exclusão serão as três ideias chave deste pontificado. Comunga desta opinião?

AM – Acho que sim mas, neste momento para mim, a última é a mais importante de todas. Nós estamos de facto num capitalismo explosivo.

 

AE – Será também a mais importante para o Papa?

AM – Nas frases dele é evidente. Sobretudo deve ter peso no espírito dele o ambiente em que nasceu, cresceu e exerceu a sua função de pastor porque são regiões que foram submetidas à exploração económica onde as políticas exclusivas foram dominantes. Com regimes políticos que fazem lembrar as brutalidades da própria colonização naquela época e isso não deve levar ninguém a surpreender-se que o Papa considere esse ponto fundamental.

 

AE – Essa circunstância de vir da América do Sul, a mensagem do Papa está a ser cada vez mais global e está a impor-se?

AM – Penso que sim, pelas notícias. Claro que ele não tem exercício de meses suficiente para que se observe imediatamente resultados embora sendo a intervenção do Papa um milagre que não seja surpreendente mas para a vida normal não há tempo suficiente. Se bem me recordo, o padre António Vieira diz que uma das características do milagre é dispensar o tempo que seria necessário. Não sei se aqui podemos dispensar o tempo.

 

AE – Como analisa as possíveis tensões que possam existir entre quem desejaria uma reforma imediata, feita com grandes sinais, com grandes tomadas de posição e essa forma de anunciar e transformar do Papa?

AM – Aquilo que ele está a fazer, acreditando no poder da palavra, é o método a seguir porque no fundo é aplicar o mesmo que se faz com o pecador. Procura-se chamar, que ele readote os seus valores e é o que o Papa está a fazer. Não espero que ele faça coisas revolucionárias, incitamentos. Ele vai continuar como São Francisco [de Assis] se for possível até sem palavra, só o exemplo já serve de pregação.

 

AE –A própria expetativa de revolução não poderá ser prejudicial ao pontificado do Papa Francisco?

AM – Nós nunca sabemos porque o processo social é cada vez mais complexo. Todos falamos em globalismo, porque fica bem para mostrar a nossa cultura, mas conhecer as variáveis, as redes, as interdependências e o consequencialismo de tudo isto no globalismo sabemos pouco. Ignoramos muito e fazer prognósticos acho uma audácia. Mas não é uma audácia ver se aquele homem está a agir de acordo com os seus valores, a autenticidade, e isso é o fundamental. E ele está a agir com autenticidade porque o comportamento está a ser como Francisco.

Há aqui uma coisa que também se aplica aos governos e muitas vezes parece que não gostam que se diga isso ou não entendem que a autenticidade é a coincidência entre o que se anuncia e o que se faz. A falta de coincidência dá origem à falta de autenticidade e da legitimidade do exercício. Não é o caso nem o esperável deste Papa. Ele vai dar o exemplo de autenticidade enfrentando todos os riscos e segundo alguns comentaristas anunciam-se riscos grandes para esta autenticidade que o Papa está a mostrar. Mas ele não via desviar-se disso. A fé dele é suficiente para não se desviar.

 

AE – O livro a “Lista de Bergoglio”, que referiu, conta episódios que o Papa não temeu colocar a vida em risco na Argentina. Algo semelhante poderá passar neste pontificado?

AM – Espero que não aconteça como aconteceu com João Paulo II que, neste aspeto, não teve a intervenção que Francisco está a ter. O Papa João Paulo II correu o risco que correu e não tinha de enfrentar um problema como este momento da reforma da Igreja e da pobreza do mundo de uma economia instalada.

É evidente que Francisco respondeu ao chamamento para ser sacerdote, também está sempre à espera do chamamento quando tiver de acabar a sua passagem pelo mundo.

 

AE – O professor Adriano Moreira está a apresentar o novo livro “Memórias do outono ocidental. Um século sem bússola”. O Papa Francisco poderia ser ou está a ser a bússola que o Ocidente não tinha?

AM – Ele está a procurar que se torne a usar a bússola porque no que respeita à doutrina propriamente e aos princípios são os mesmos. Ele está a combater o abandono dos princípios e isso é a tarefa dele. Espero quê se consiga inverter esta marcha e se consiga pôr o diálogo no lugar do confronto, o respeito no lugar da tolerância, que é absolutamente necessário, e a paz no lugar do combate.

Uma das razões que me leva a isto é o facto de termos feito isso em algumas ocasiões, como nas cruzadas e na reconquista, trazer Deus para o campo da batalha. Não é para o campo de batalha que é preciso chamar pelos valores mas para a paz e penso que intervenção dele vai ser importante.

 

AE – A exortação apostólica “Evangelii Gaudium” do Papa Francisco: Está aqui uma bússola?

AM – Está. Eu estou a ler com a maior atenção, não quero desde já fazer opiniões do documento que considero da maior importância, mas aí já se começa é a repor a bússola. Eu julgo que é assim que ele está a agir.


(A entrevista vai ser transmitida este domingo, às 11h20, no programa '70x7, da RTP2)



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