Depois das dificuldades no colonialismo e na guerra civil, surgem «sinais obnubilados de subserviência»
Durante mais de 25 anos a Igreja em Angola sofreu vários reveses.
Entre 1975 e 1980 foi espoliada da maior parte dos seus bens pelas novas autoridades políticas. Orientadas pelo marxismo científico e ateu, elas empenharam-se numa profunda campanha de ‘marxisação’ das populações. A Igreja foi desdenhada, hostilizada, denegrida e a sua autoridade moral questionada, senão mesmo negada. As suas instituições de ensino foram-lhes retiradas, foi restringido o seu direito de educação dos adolescentes e jovens, reduzida e vigiada a sua tarefa de evangelização do povo.
O resultado foi a ausência da maior parte da juventude e da classe média, nas igrejas, e um acanhamento de muitos cristãos em frequentar os actos litúrgicos e as sessões de formação cristã. Muitos cristãos e cristãs, porém, revelaram-se. No meio das perseguições e humilhações foram mártires, no sentido original do termo, isto é, testemunhas intrépidas da sua fé e muitos (mormente catequistas) deram a própria vida por Cristo. Nessa altura, a linguagem dos Bispos católicos era una e firme na reposição da verdade e na defesa dos valores morais e dos direitos humanos, frente a uma ideologia que os distorcia e a uma guerra que os ignorava.
Este ambiente durou até 1992. Daí em diante, os discursos dos governantes em relação à Igreja começaram a ser mais conciliadores. Muitas das estruturas físicas da Igreja (como escolas, colégios, seminários) foram devolvidas e a sua reabilitação custeada pelo Governo. Começou a notar-se uma aproximação entre as autoridades eclesiásticas e governativas.
Com o fim da guerra em 2002, verificou-se um «boom» de afluência às igrejas, cuja motivação teológica não é muito clara. A presença do sincretismo religioso ainda é patente na vida de muitos cristãos. A proliferação de seitas e os novos movimentos religiosos parecem jogar um papel fundamental na filiação dos crentes apostados numa prática religiosa mais emotiva e sentimentalista que teológica. Por isso, vê-se a multiplicação de movimentos religiosos, de associações cristãs, de peregrinações aos santuários de todo o tipo, alguns criados «ad hoc» e encorajados pelos bispos das respectivas dioceses.
Paradoxalmente, as vocações religiosas e sacerdotais estão a regredir de forma preocupante. A procura do bem-estar, da tranquilidade económica (facilitada pela abundância de empresas públicas e privadas), a infiltração envolvente do relativismo ideológico, do materialismo consumista e do laxismo moral, exerce uma influência cada vez mais irresistível da parte dos jovens (eles e elas).
Angola já passou por mil vicissitudes no que diz respeito à prática da religião, tais como a instrumentalização política da religião pelo Estado colonial, a reacção do comunismo ateu, durante a revolução e a guerra civil, e agora assistimos a uma certa crise ético-moral e religiosa na vida de muitos angolanos. Actualmente, muita gente parece “tranquilizar-se” com a simples pertença sociológica à Igreja, desde que não se lhe toque nas questões fundamentais do ser cristão.
Por outra parte, parece que com a aproximação entre a Igreja e o Estado, o discurso profético que caracterizou a hierarquia católica, durante o tempo do comunismo e da guerra, tornou-se, agora, pacífico, mesmo diante de gritantes injustiças sociais. A Igreja angolana corre o risco de viver uma «paz constantiniana» do séc. IV. Passado o tempo da perseguição e martírio, a Igreja de Roma, apanhada de surpresa, procurou encontrar no âmbito do Império romano um espaço de acomodação. Ela viu-se na necessidade de recorrer às estruturas estatais para se organizar. O Estado, por sua vez, tinha todo o interesse de se apoiar na Igreja, não tanto porque se tinha convertido, mas sobretudo para se estabilizar. Por isso, estreitou as suas relações com a Igreja, favoreceu-a e concedeu-lhe privilégios, mas passou também a dominá-la como Igreja católica imperial…E depois, quando o Império entrou em estado progressivo de desintegração, os seus efeitos também atingiram a Igreja profundamente.
Em Angola, depois da instrumentalização da religião no tempo colonial, depois da perseguição e martírio durante a guerra civil, surge agora uma paz semelhante à constantiniana. O receio é de vermos uma Igreja angolana com sinais obnubilados de subserviência. O que pode acontecer é que a Igreja angolana confie demasiadamente num Estado secularizado e não realmente convertido (como o fez a Igreja primitiva), e venha a sofrer a mesma crise como outrora.
Pe. Jerónimo Cahinga, teólogo angolano