No primeiro fim-de-semana de outubro, decorreu em Bruxelas e Lovaina a reunião das Comissões Justiça e Paz Europa, em que participou uma delegação Portuguesa. Além da Assembleia Geral, compreendeu um Workshop centrado na "Ecologia integral" proposta pelo Papa Francisco na Laudato Si, com conferências, debates e visitas de campo.
O texto que se segue parte precisamente da minha experiência na visita feita durante a tarde de sábado.
O dia nasceu estremunhado, carregando a insegurança do “Sabe Deus o que nos espera!”, que é verdadeiro para cada momento, mas nem sempre temos as orelhas da alma suficientemente arrebitadas para escutar.
Em Bruxelas os programas de “Justice and Pace Europa” não são meigos. E desta vez abordou-se a Laudato Sii com um olhar largo abarcando a criação não como um ato temporal passado, mas como um gerúndio presente contínuo, dentro do ‘já e ainda não’. Não é difícil perceber as dores da humanidade como o ‘ainda não’ gemido, suado, derrotado, impotente, sem uma gota que mate a sede, sem uma luzerna de amanhã.
Então faz sentido o Jesus-Deus que incarna neste presente e com o seu grito “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” que exige a nossa participação.
O programa desta tarde foi diversificado. Fui no grupo da “House of compassion”. Éramos um grupo de cinco. Fizemos vida citadina, calcorreámos as ruas de Bruxelas, andámos de metro, desenterrámos na igreja de Santa Catarina e num ápice chegámos à House of Compassion, que não é senão a igreja de São João Batista. Eis-nos num reduto das periferias mais periféricas: uma igreja que é um contínuo natal de Belém, onde Ele não tinha lugar. Aqui Ele está incarnado de refugiado, gente ilegal. E a sua casa está aberta, é um local mítico de gritos por humanidade. Uma igreja com três naves, desafogadas cuja origem remonta ao século XVII. A nave lateral direita está ocupada com uma exposição fotográfica de Yann Arthus Bertrand, conhecido fotógrafo, especialista em fotografia aérea, com imagens ilustrativas de textos da Laudato Sii. Há um confronto constante agridoce de realidades desta nossa casa comum. Depois, por detrás de painéis mal-amanhados, passando por uns panos que faziam de porta, entrámos noutro mundo. Na parte direita do transepto cozinhava-se, havia uma mesa, muitos colchões espalhados, algumas mulheres, num outro canto ouviam-se vozes de homem. Na capela mor havia tapetes enviesados todos orientados para o mesmo lado.
Muitos cartazes improvisados de manifestações passadas, de perguntas sem resposta, de gritos engolidos em seco. O chão está revestido de pedras cortadas aos quadrados brancos e pretos, um enorme xadrez. É um xadrez tão grande que será difícil chegar ao xeque-mate. A nave central está vazia. Disseram-nos que outras vezes ali se estende uma enorme mesa feita de pequenas mesas emendadas, mancas, descartadas por outros. A nave esquerda é um contínuo suceder-se de cantos, colchões, papéis colados nas paredes com palavras de um francês inocente e gemido. Aqui e ali há grandes quadros com pinturas da igreja. No início tem-se uma sensação estranha, parecendo experimentar um dualismo míope. Afinal, muitas das nossas cruzes são filhas dos dualismos que nos invadem sem licença.
Fomos atendidos por uma jovem que é voluntária neste projeto. Falava muito rápido como se quisesse dizer muito em pouco tempo, como se fosse a única oportunidade... no entanto, a sua energia permitia-lhe sorrir, um sorriso lindo que lhe fazia brilhar os olhos quando contava os pequenos feitos alcançados ao longo destes anos. Numa cidade com um coração europeu, tem bem visível uma nódoa humana, impossível de ignorar, cujo presidente da câmara queria deslocar algures, menos exposto. O não de todos foi decisivo, é importante o simbolismo e a visibilidade. O cardeal mantém-se de braços abertos nesta oferta, embora outros prefeririam ver São João Batista transformado em museu. Vale a fibra de João que não teme poderes, que sabe o que é o deserto, que sendo único (minoria) não se detém na perseguição de uma humanidade capaz de tal desiderato para todos.
Não pude evitar silêncios dolorosos na alma e sentir uma enorme gratidão por quanto se esfalfam pelo próximo e sabem com a vida o que é a compaixão, aquela compaixão que é a genuína fraternidade.
Continuámos a deambular pela cidade que carrega novas fisionomias que ninguém quer ver, que ninguém quer permitir-se dialogar, que está grávida de uma outra gente, mas todos filhos do mesmo Pai.
Na gare central apanhámos um comboio até Lovaina. Aqueles minutos bem transportados permitiu ver a gente que viajava, as correrias num sábado à tarde, crianças cujo leite tem outras línguas e culturas...
O cinzento do céu anunciava chuva, uma bênção indiscriminada. Enquanto seguia a rua com árvores bem aprumadas e barbeadas, gente para lá e para cá, lojas de porta aberta com aspeto convidativo e, conforme avançava, as esguias torres da igreja de São Pedro e do Município vão crescendo diante dos nossos olhos, crescem para o céu. Apetecia ficar ali na Grote Markt e imaginar uns diálogos entre poderes temporal e religioso, entre cultura e fé, entre ciência e leis, entre indiferença e procura, entre cerveja e chocolate... Há um infinito humano que está para lá da nossa finitude.
Vale a pena mergulhar nesta cidade universitária e deixar-se encantar, colher a sua história, saborear o hoje como um dom de tantos.
Zé Maia