Comissão Nacional Justiça e Paz

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Alfredo Bruto da Costa em entrevista à revista "Transformar"

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O que falta ainda para acabar com a pobreza e a exclusão?

Eu penso que o problema essencial que está por detrás da persistência da pobreza em Portugal, apesar do muito que se faz (e refiro-me ao muito que se faz desde o século XII, quando os próprios monarcas se preocupavam com a pobreza e tomavam partido a favor dos pobres), é que nós hoje sabemos, a partir dos estudos e da análise científicos sobre as causas da pobreza, que esta tem, digamos assim, duas componentes importantes.

A primeira, são as situações de carência em que os pobres vivem e que é aquilo que mais salta à vista quando a gente pensa na pobreza. E nós temos a inclinação para tentar acudir a essas situações de carência - e em Portugal temos imensíssimos exemplos de movimentos, instituições, grupos. que tentam matar a fome às pessoas, dar um tecto aos sem-abrigo ou dar de vestir a quem não tem roupa. Mas não vamos às causas da pobreza! Tudo quanto se faz contra a pobreza, a meu ver, mantém o grosso da Sociedade na mesma. E é nesse grosso da sociedade que estão as causas da pobreza.

Portanto, enquanto um programa de luta contra a pobreza (seja público, seja privado, seja misto, seja o que for.) mantiver a Sociedade exactamente como está - como se a pobreza fosse um fenómeno periférico, resolúvel por acções periféricas -, nós nunca chegamos a resolver o problema da pobreza.

Nesse sentido, pode-se concluir que a causa estruturante da pobreza e da sua persistência é uma falha na cidadania?

No fundo, é um problema de cidadania, mas é um problema do modo como a Sociedade está organizada e funciona, que permite ou não que determinados grupos possam exercer a sua cidadania.

Passa também pela sensibilização da sociedade?

A sensibilização é um segundo problema. É que se nós formos introduzir as alterações que é preciso introduzir para retirar as causas da pobreza, nós vamos ter grandes resistências pela parte da Sociedade que não é pobre. E aí é que se põe o problema da cidadania em termos de dever da justiça e da solidariedade que os cidadãos não pobres têm para, não só consentirem, mas até exigirem, transformações que retirem as verdadeiras causas da pobreza.

Portanto, os pobres, por causa da sua pobreza, estão impedidos de exercer plenamente a sua cidadania e uma das causas é que os que não são pobres ainda não se deram conta das transformações que são precisas, que os vão afectar necessariamente, e não deram conta também de que consentir nessas alterações, e até exigi-las por parte das autoridades, faz parte do exercício de cidadania deles.

Nesse caso, a actual crise, que se está a manifestar de um modo mais forte e mais globalizado, vem permitir que haja uma maior consciencialização para esta realidade?

Vem permitir por parte daqueles que pensam, mas a grande maioria das pessoas não pensa. Veja que os próprios (em certo sentido) autores dos problemas que criaram a crise, se puderem, continuarão a fazer a mesma coisa. Porque para eles aquilo não foi um erro deles, aquilo é uma opção que eles fizeram e, portanto, se tiverem condições, eles tornarão a tomar a mesma opção.

Isso quer dizer, então, que a resolução do problema tem de ser mais a nível global e não tanto a nível local?

Global também! A pobreza não se resolve, em nenhuma localidade, em nenhum país, sem uma visão global - isso é muito claro. Agora, o que acontece é que há coisas que os governos nacionais podem fazer e que não fazem por causa das resistências internas. Quando, por exemplo, nós estamos na situação em que estamos e se volta a falar do problema dos prémios dos gestores dos bancos e das empresas mais florescentes, apenas com o argumento de que conter esses prémios não resolvia o problema, quer dizer que as pessoas não são sensíveis aos sinais da solidariedade, que podem não ter uma expressão quantitativa de poupança, mas significam que a solidariedade conduz a novos comportamentos.

Num âmbito mais geral, essa solidariedade implicaria, por exemplo, que houvesse um salário mínimo com um valor mais elevado?

Certamente. Como sabe, a OIT [Organização Internacional do Trabalho - organismo da ONU] tem o seu programa de emprego decente e um dos elementos desse "emprego decente" é certamente um salário suficiente.

Mas nesse caso, os patrões argumentam que a produtividade também deve ser tomada em conta.

Argumentam, em primeiro lugar, sem nós termos à nossa vista as contas da empresa, para sabermos se o que eles dizem é ou não verdade e é ou não inalterável. Você já viu alguma conta duma empresa como deve ser?!...

Em segundo lugar, eles falam de produtividade, como se a produtividade dependesse apenas do lado do trabalho, dos trabalhadores. Ora, nós sabemos que a produtividade de um país depende de vários factores e que o factor do trabalho nem sequer é o principal. Há muitos outros factores que prejudicam a produtividade que não têm nada a ver com o factor trabalho.

Por outro lado, a questão que se põe é uma questão mais geral: se uma empresa não pode aumentar como quis - e fez - o Governo) em 25 euros o ordenado dos que recebem o salário mínimo (e só a esses). se não tem dinheiro para isso, qual é a viabilidade dessa empresa? Que tipo de estabilidade é que tem?

E será que, se não for por esta razão, não irá abaixo por uma outra razão muito mais fundamental?

E quanto às qualificações, tanto de empregados como de patrões?...

Exactamente. O problema das qualificações é um problema chave. É dos poucos problemas em que estamos todos de acordo.

Não estamos todos de acordo é quanto à importância que as pessoas atribuem à falta de qualificação dos empresários. Todos estamos de acordo em que a falta de qualificação dos trabalhadores é um estrangulamento importante e que é urgente ultrapassar, embora, pela sua própria natureza, não possa ser ultrapassada de um dia para o outro. Mas pouca gente fala na baixa qualificação dos empresários, cujas consequências são muitíssimo mais graves e mais bloqueantes do que a dos trabalhadores.

Qual é, então, o papel da escola em relação à aquisição de competências?

A escola tem uma importância decisiva. Mas isso não quer dizer que também não deva haver condições de qualificação para se ser empresário. Porque, hoje em dia, se se trata de um empresário por conta própria, pode sempre dizer que se há algum inconveniente o prejudicado é o próprio e não faz mal a ninguém mais. Mas quando um empresário tem empregados, a falta de formação dele repercute-se não só sobre ele, mas sobre todos os empregados que ele tem. Portanto, há aqui uma responsabilidade social perante todos quantos trabalham na empresa. Por isso, quando se cria uma empresa, uma das condições que devem ser postas para que a empresa possa existir é que o empresário tenha a qualificação suficiente para isso. Como, aliás, se exige que os trabalhadores tenham as suas carteiras profissionais e a sua qualificação - embora em termos muito menores do que aquela que hoje nós sabemos que é necessária enquanto base para uma empresa sobreviver numa economia moderna.

De que modo é que a criação do próprio emprego pode ser um factor de combate à pobreza, nomeadamente no que toca, por exemplo, às potencialidades permitidas pelo microcrédito?

É um instrumento. Só que depende muito da divulgação e da generalização que se possa fazer deste tipo de apoio.

O microcrédito é um exemplo e um bom exemplo.

Mas nós ouvimos falar de microcrédito e ouvimos falar da sua relação sobretudo com a criação de emprego.

Geralmente também associado à formação específica para a actividade a que se destina.

Ora bem. No Bangladesh, que como sabe, é o país de origem do microcrédito, ele está também relacionado com programas de desenvolvimento comunitário. O que lá acontece tem a ver com aldeias inteiras que são promovidas por um conjunto de iniciativas e actividades, uma das quais é o microcrédito. E nós, aqui, estamos a encarar o microcrédito como se fosse uma coisa única, sem mais ajudas de outras áreas, que têm de complementar a própria maneira de ser, maneira de comportar-se. Passa por qualificações de gestão, por exemplo, que podem ser dadas também pelo projecto de microcrédito, mas que funcionam ao nível de uma vivência social e de desenvolvimento comunitário.

Em relação à Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), a que preside, quais têm sido os principais frutos dos encontros e reflexões que têm sido desenvolvidos nos últimos anos?

Os frutos nunca se conhecem. O que posso dizer é que temos sinais importantes de que são actividades consideradas úteis e necessárias por amplos sectores da Sociedade portuguesa, não só no interior da Igreja, mas até fora dela. Temos tido convites para participação em actividades por parte de instituições que não têm nada a ver com a Igreja. Temos convidado, pela nossa parte também, entidades da Igreja e que não pertencem à Igreja para trabalharem connosco em projectos concretos, nos quais há uma sintonia de pontos de vista sobre a matéria em questão, mesmo que haja divergências noutras matérias e penso que ao nível do interior da Igreja, está, sobretudo, a haver uma certa tradução da Doutrina Social da Igreja em propostas mais concretas, em termos de influenciar os centros de vida das pessoas e os comportamentos das pessoas.

Quais foram os principais factores que o levaram a interessar-se pela questão da pobreza?

Eu tirei o curso de Engenharia Civil, que no meu tempo era um curso de seis anos. Ao fim do terceiro ano, eu já sabia que não queria ser engenheiro. E a razão porque não queria ser engenheiro, foi ter sentido a importância do meu envolvimento em problemas da justiça social. A partir daí, exerci engenharia só durante um ano e depois toda a minha carreira foi no campo do desenvolvimento económico e social. Ensinei matérias ligadas aos aspectos sociais e já no fim da carreira, fiz um doutoramento sobre a pobreza.

Agora, que estou reformado, quero dedicar-me mais profundamente e mais livremente, àquilo que são valores nos quais acredito muito a sério, que são os problemas da justiça, da paz, do desenvolvimento. E, embora tenha outras actividades que me atraem, designadamente aprofundar algumas questões ligadas à democracia, à pobreza ou à justiça, tenciono fazê-lo, o mais possível, no âmbito da CNJP.

Considera que o facto de estar reformado e continuar em actividade é um bom exemplo para a Sociedade?

Eu não me imagino de outra forma e, aliás, os médicos com quem tenho falado o que me dizem é que o melhor que pode acontecer é a gente, durante o tempo da reforma ter uma actividade que encha, que convença, que deixe ocupado. Claro, sem cair em exageros que possam fazer mal à saúde.

Eu neste momento, sinto-me perfeitamente capaz, tirando uma ou outra coisa. Para mim não há nenhuma diferença entre há uns meses atrás, quando tinha uma profissão, e hoje. A única diferença é que antes eu era remunerado com um salário e agora sou remunerado com uma pensão.

Do que conhece da vida e da obra do Padre Abel Varzim, considera que pode ser um testemunho válido para os nossos tempos?

Evidentemente que pode. O que sobressai da imagem que eu tenho dele, apesar de o conhecer muito pouco (pessoalmente não o conheci), é que era um homem que respeitava a sua própria liberdade e que jogava a sua liberdade em benefício da Justiça - o que são duas qualidades que estão mais do que actuais, são absolutamente pão para a boca para o mundo de hoje.

Entrevista e Fotos: Rui Almeida