A Comissão Nacional Justiça e Paz publicou na Semana Santa uma nota sobre a perseguição aos cristãos em várias partes do mundo, com o título dos versos de Sophia de Mello Breyner: Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Dias depois, a questão tornou-se, tragicamente, ainda mais atual, com o massacre na Universidade de Garissa, no Quénia. E outros acontecimentos análogos continuam a verificar-se desde então.
Durante muito tempo, imperou a este respeito, sobretudo na sociedade civil, mas também na Igreja, a ignorância, ou uma atenção muito ténue, desproporcionada em relação à gravidade da situação. Ainda hoje, estes atentados à vida e à liberdade religiosa, que alguém já qualificou como das mais graves violação dos direitos humanos do início do século XXI, parecem não receber manifestações de repúdio tão intensas como as de outros atentados não tão graves e frequentes.
Sobre esta questão foi publicado um livro, Le Livre Noir de la Condition des Chrétiens dans le Monde (XO Éditions), que recolhe contributos de setenta colaboradores de várias partes do mundo, coordenados pelo bispo francês Jean Michel di Falco, o dominicano inglês Timothy Radcliffe e o historiador italiano Andrea Riccardi. Num artigo introdutório desse livro, o jornalista norte-americano John Allen Jr. analisa as possíveis razões desse silêncio, na sociedade e na Igreja. Identifica várias: a distância geográfica das zonas onde se verifica a perseguição; a hostilidade contra os cristãos na opinião mais influente no Ocidente; o hábito de encarar os cristãos como maioria opressora (com a memória histórica da Inquisição) e não como minoria perseguida e socialmente marginalizada; o não alinhamento desta causa entre as causas ideologicamente mais marcadas (na expressão do intelectual francês Régis Debray, estes cristãos são «demasiado cristãos para interessar a esquerda e demasiado estrangeiros para interessar a direita»); o receio de perturbar o diálogo intercultural e inter-religioso e de alimentar o chamado conflito de civilizações; o desconforto que o enfoque no sofrimento e no martírio destes cristãos provoca numa visão da religião como fator de serenidade e paz interior.
Nenhuma destas razões pode justificar o silêncio perante este drama. De modo particular no Médio Oriente, está em sério perigo a presença dos cristãos, que remonta aos primeiros tempos do cristianismo. A perseguição aos cristãos nesses locais não é só de hoje: ao longo da história sucederam-se períodos de convivência pacífica e outros de perseguição (tenho um amigo brasileiro de origem síria cujos antepassados fugiram para o Brasil das perseguições aos cristãos). Ma nunca como hoje esteve tão próximo o completo desaparecimento da presença cristã nessas terras.
Não se trata de pregar uma nova cruzada contra o Islão ou outras religiões. Também fieis muçulmanos e de outras religiões são vítimas do extremismo fundamentalista que atinge os cristãos. Os expoentes mais representativos dessas religiões também repudiam esse extremismo (sendo que o deveriam fazer mais intensamente – é certo). O diálogo e a reconciliação só são autênticos quando assentam na verdade e na justiça (recordou-o o Papa Francisco a propósito do genocídio dos arménios).
Esteve entre nós há pouco tempo Paul Bhatti, irmão de Shabaz Bhatti (o ativista assassinado por defender os direitos dos cristãos e outras minorias paquistanesas) que continua hoje o trabalho deste. Do seu testemunho, impressionou-me a sua capacidade de perdão e o seu empenho na causa do diálogo e cooperação entre pessoas de diferentes credos. Muito longe de qualquer espírito de “guerra religiosa”.
Também não se trata de alimentar o choque de civilizações. Não estamos perante uma causa que oponha o Ocidente ao mundo árabe (e não podemos deixar que assim seja falsamente apresentada). Os cristãos do Médio Oriente estão plenamente enraizados e integrados na cultura árabe, não são “agentes do Ocidente”, como pretendem muitos dos que os perseguem. E o mesmo se deve dizer dos cristãos africanos, indianos, paquistaneses ou chineses em relação a essas culturas.
E não se trata de uma causa apenas dos cristãos, uma causa sectorial ou corporativa. Trata-se de uma causa de defesa dos direitos humanos, que também interessa outras minorias. Muitos muçulmanos mais clarividentes consideram a presença dos cristãos no Médio Oriente uma garantia de abertura, pluralismo e democraticidade.
Mas não podemos esquecer que os cristãos (de todas as denominações) têm um especial dever de proteção dos seus irmãos na fé, do mesmo modo que qualquer pessoa tem um especial dever de proteção da sua família. Se não formos nós a fazê-lo, quem o fará?
É verdade que Jesus Cristo prometeu a perseguição aos que O seguissem e a muitos destes cristãos está reservada a glória do martírio. Mas isso não significa que não seja nosso dever fazer tudo o que está ao nosso alcance, no quadro da ética e do direito, para evitar atentados contra a vida e a liberdade destes nossos irmãos. Porque a nossa omissão pode tornar-nos cúmplices dos perseguidores.
O apelo a que ninguém pode ficar indiferente é, pois, o do Papa Francisco na oração Regina Caeli de 6 de abril: que a comunidade internacional não continue «muda e inerte» perante esta situação.
Pedro Vaz Patto