O Papa Franscisco convida à leitura da sua exortação apostólica Amoris Laetitia de uma forma paciente e não apressada. Na verdade, a multiplicidade de temas nela abordados, desde o amor e o diálogo no casal, às crises matrimoniais, à fecundidade e à educação, já levou a qualificar este documento como “enciclopédia” da família. Uma das muitas vertentes por que poderá ser analisada é a da função social da família e das políticas de família.
Sobre o papel social da família, o Papa é muito claro:
«Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam, acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da união conjugal?» (n. 52)
Mas a proteção da família não pode limitar-se a proclamações retóricas, exige a garantia de direitos sociais, a começar pelo direito à habitação:
«A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a formalização duma relação. É preciso lembrar que “a família tem direito a uma habitação condigna, apropriada para a vida familiar e proporcional ao número dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que proporcione os serviços básicos para a vida da família e da comunidade”. Uma família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente. Este exemplo mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa de ser protegida. A defesa destes direitos é “um apelo profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão”, sobretudo no contexto actual em que habitualmente ocupa pouco espaço nos projetos políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de “poder contar com uma adequada política familiar por parte das autoridades públicas no campo jurídico, económico, social e fiscal”. Às vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas, quando têm de enfrentar a doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. “As coerções económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida social ativa. O atual sistema económico produz várias formas de exclusão social. As famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao trabalho. As possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é muito seletiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes, agravadas pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre si e com os filhos, para alimentar diariamente as suas relações». (n. 44)
À família, como verdadeiro “santário da vida” está associada a defesa da vida, desde a conceção até ao seu fim natural:
«Neste contexto, não posso deixar de afirmar que, se a família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o direito à vida do bebé inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objeto de domínio doutro ser humano. A família protege a vida em todas as fases da mesma, incluindo o seu ocaso. Por isso, “a quem trabalha nas estruturas sanitárias, lembra-se a obrigação moral da objeção de consciência. Da mesma forma, a Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso terapêutico e a eutanásia”, mas também “rejeita firmemente a pena de morte”». (83)
A proteção da vida na sua fase inicial, de maior vulnerabilidade, assume, assim, particular relevo:
«Cada criança, que se forma dentro de sua mãe, é um projeto eterno de Deus Pai e do seu amor eterno: “Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei” (Jr 1, 5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso do Pai, que vê para além de toda a aparência.» (n. 168)
À criança deve ser garantido o direito a um pai e uma mãe (o que, entre nós, não se verificou na recente alteração à lei da adoção e não se verifica no projeto de alteração à lei da lei da procriação medicamente assistida atualmente em discussão):
«Toda a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como disseram os bispos da Austrália, ambos “contribuem, cada um à sua maneira, para o crescimento duma criança. Respeitar a dignidade duma criança significa afirmar a sua necessidade e o seu direito natural a ter uma mãe e um pai”. Não se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como fundamento da família. Caso contrário, o filho parece reduzir-se a uma posse caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são “cooperadores do amor de Deus criador e como que os seus intérpretes”. Mostram aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor. Além disso, é juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também receber do outro. Se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado amadurecimento do filho.» (n. 172)
O Papa alerta para o erro da ideologia de género, denunciando as tentativas de a impor em diversos âmbitos, incluindo o educativo:
«Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente chamada gender, que “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo”. Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que “sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem distinguir-se, mas não separar-se”. Por outro lado, “a revolução biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o ato generativo, tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais”. Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspetos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.» (n. 56)
A respeito da educação dos filhos, o Papa reafirma com clareza o direito prioritário dos pais a escolher a que mais se adequa às suas convições (direito que também não está plenamente garantido entre nós):
«Mas parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é, simultaneamente, “dever gravíssimo” e “direito primário” dos pais. Não é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender tirar-lhes. O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária, acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm o direito de poder escolher livremente o tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: “qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo”. Infelizmente, “abriu-se uma fenda entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o pacto educativo quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a família entrou em crise”» (n. 84)
Destas e de muitas outras questões não falou a maior parte da comunicação social ao comentar a Amoris Laetittia. Mas muitas são as questões relativas à família, que nela são abordadas com profundidade e clareza. Compreende-se que o Papa tenha convidado à sua leitura paciente e não apressada.
Pedro Vaz Patto