Comissão Nacional Justiça e Paz

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ESCUTAR O CLAMOR DOS POBRES por Pedro Vaz Patto

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               Serve-nos de inspiração para a celebração deste Dia Mundial dos Pobres a mensagem do Santo Padre que alude no seu título à escuta e resposta ao clamor dos pobres (Sl 34,7). Diz o Papa nessa mensagem (n. 2), referindo-se ao clamor, ou brado, dos pobres: «como é possível que este brado, que sobe à presença de Deus, não consiga chegar aos nossos ouvidos e nos deixe indiferentes e impassíveis? Num Dia como este, somos chamados a fazer um sério exame de consciência para compreender se somos verdadeiramente capazes de escutar os pobres.» Por muito meritória que seja uma qualquer ação social, há que ver se ela nasce dessa escuta do clamor dos pobres, das suas angústias e sofrimentos, tal como Deus escuta esse clamor, essas angústias e sofrimentos.

               Gostaria de começar por evocar um evento em que participei há pouco tempo, por ocasião do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, uma efemérida do âmbito civil. Essa efeméride serviu de ocasião para uma iniciativa ecuménica que reuniu cristãos de várias denominações em torno da temática da Mensagem bíblica como «fundamento e contributo para a erradicação da pobreza» (assim se designava a iniciativa) .

            A este respeito, do contributo que pode dar a inspiração bíblica no combate à pobreza no mundo, recordei um livro de um rabino britânico muito conhecido (recebeu o prémio Templeton, uma espécie de prémio Nobel para a religião), Jonathan Sachs. O livro tem por título Not in my name (Não em meu nome) e pretende demonstrar como a mensagem bíblica bem interpretada e não instrumentalizada é o melhor antídoto contra a utilização da religião para tentar justificar a violência (a violência em nome de Deus). E começa por salientar um aspeto do que representa a novidade dessa mensagem no contexto da história da humanidade e da história das religiões: um Deus que se coloca do lado dos pobres (que houve o seu clamor), dos vulneráveis e que não têm poder. As religiões politeístas, pelo contrário, serviam de justificação do poder hierárquico político e social; nelas, o faraó, o imperador ou o rei eram, de vários modos, equiparados a Deus; nelas, o divino estava do lado do poder humano e era instrumento de fortalecimento desse poder. A novidade da Bíblia hebraica (o Antigo Testamento, para os cristãos) está na valorização de qualquer pessoa como «imagem e semelhança de Deus», de um Deus que intervém na história para libertar os que não têm poder, em defesa dos mais pobres, fracos e vulneráveis. Os profetas bíblicos criticam e enfrentam o poder e promovem uma ordem social de justiça, amor e paz. E a propósito da violência, salienta Jonathan Sachs que o caminho da violência em nome da religião é o da vontade do poder, o de Caim, não o do Deus revelado na Bíblia, que a essa violência de Caim responde: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim» (Gn 4, 10).

            Com o Novo Testamento – podemos nós acrescentar à tese de Jonathan Sachs – um outro passo é dado no sentido da identificação do Deus omnipotente com os mais pobres e impotentes. Jesus, o Homem-Deus, considera feito a Si o que fazemos ao mais pequeno e mais fraco dos nossos irmãos (Mt, 25, 31-46). Foi o que procurei salientar nessa iniciativa realizada por ocasião do Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza, que tinha por temática a Bíblia «como fundamento e contributo para a erradicação da pobreza»: não encontro motivação e convicção interior mais fortes do que esta para combater a pobreza como violação da dignidade humana – Deus que considera feito a Si o que fazemos aos mais pobres. Aqui reside o maior «fundamento e contributo» (como sugeria o título desse evento) da Bíblia para a erradicação da pobreza.

            Considerar a esta luz o combate pela erradicação da pobreza não pode deixar de ter consequências. Se Deus considera feito a Si o que fazemos aos mais pobres, impõe-se que, na nossa relação com os pobres afastemos qualquer sobranceria paternalista que os menoriza e fere na sua dignidade, tal como a indiferença e frieza burocráticas que os trata como números de estatística.

            Quando nesse Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza fui interpelado na rua por um ou dois pedintes (como certamente vos sucede com alguma frequência), associei esses dois factos: aquele pobre e a efeméride desse dia, relativa à erradicação da pobreza; um sinal claro da pobreza a eliminar que me interpelava. É claro que me veio à mente a ideia de que não era certamente a minha esmola que iria erradicar a pobreza, nem sequer aquela de que notoriamente padecia aquele pedinte. Mas também me ocorreu a advertência do Evangelho: naquela pessoa vejo a imagem de Jesus, Deus feito Homem. E isso não pode deixar de ter consequências na minha atitude para com ele, para além da esmola.

            Nesse dia, foi também interpelado por jornalistas enquanto presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz. E recordei, a propósito, uma resolução da Assembleia da República de há vários anos que partiu da iniciativa dessa Comissão quando era presidida por Alfredo Bruto da Costa (de saudosa memória, que dedicou toda a sua vida a esta causa, como poucos em Portugal), resolução aprovada por unanimidade, que define a pobreza como violação dos direitos humanos, ou seja, como afronta à dignidade da pessoa humana. Não sou, como era Alfredo Bruto da Costa, especialista nesta área e, por isso, não soube responder à pergunta concreta sobre que medidas devem ser tomadas para erradicar a pobreza em Portugal. Mas quis salientar que considerar a pobreza como violação dos direitos humanos dá uma prioridade ao objetivo da sua erradicação que não pode ser esquecida, mas que tem sido esquecida com frequência. É, antes de mais, uma prioridade, que deve sobrepor-se a outros objetivos de política económica e social, como várias vezes salientou Alfredo Bruto da Costa.

            Recordo que, segundo dados do Eurostat (organismo de estatística da União Europeia) revelados também nesse Dia Mundial da Erradicação da Pobreza, 23, 3% da população portuguesa corre risco de pobreza ou exclusão social.

            Convém salientar o seguinte, para não alimentar equívocos. Quando falamos da pobreza como violação dos direitos humanos a erradicar, falamos da carência de bens necessários a uma vida conforme à dignidade humana num determinado contexto social, falamos de miséria. Outra é a noção que também surge no Evangelho da pobreza como bem-aventurança ou como virtude, que implica a renúncia voluntária ao supérfluo, mas não a privação do que é necessário a uma vida digna. É neste outro sentido que Santa Teresa de Ávila, citada na mensagem do Papa para este dia (n. 9), fala da pobreza como «um bem que encerra em si todos os bens do mundo; assegura-nos um grande domínio; quero dizer que nos torna senhores de todos os bens terrenos, uma vez que nos leva a desprezá-los». 

            Ver Jesus no pobre tem consequências nas ações de proximidade (o amor ao próximo no sentido da pessoa concreta que está fisicamente próxima de nós), mas também em ação de âmbito estrutural (também todos os pobres que desconheço, todos eles vítimas das estruturas que geram a pobreza, são, um “próximo” para amar, também eles são imagem de Jesus).

            Justifica-se que me detenha nestes dois aspectos, que por vezes se contrapõem, mas que não devem ser contrapostos.

            Há que combater as causas estruturais da pobreza. O Papa Francisco vem salientando este aspeto, a partir da exortação apostólica Evangelii Gaudium. A ação da Comissão Nacional Justiça e Paz incide sobretudo neste plano e numa perspetiva de formação da opinião, da mentalidade, no âmbito da Igreja e no âmbito da sociedade: criar e favorecer uma opinião e uma mentalidade que atenda às causas estruturais da pobreza, mais do que situações específicas de pobreza que nos sejam próximas. A propósito da importância do combate às causas estruturais da pobreza, Alfredo Bruto da Costa usava esta imagem: se não combatemos as causas da pobreza, também no plano político, podemos estar a enxugar o chão de uma casa inundada sem fechar a torneira que está na origem dessa inundação.

            Mas isso não dispensa ações imediatas de proximidade que podem sempre atenuar o fenómeno (dar de comer a quem tem fome) até que sejam alteradas essas causas estruturais, alteração que, de resto, poderá demorar mais tempo do que o tempo de vida que resta a muitos pobres. Muitos de vós certamente combatem a pobreza deste modo e através destas ações de proximidade. É errado esquecer a importância de combater as causas estruturais da pobreza. Mas também é errada e contra o Evangelho uma outra atitude corrente, que desvaloriza estas ações imediatas de proximidade e que, sob o pretexto da necessidade de combater as causas estruturais da pobreza, pensa em delegar na política e no Estado o combate à pobreza, como se cada um de nós individualmente se pudesse eximir a essa responsabilidade, esquecendo a imagem de Jesus naquele pobre que passa ao meu lado e que não pode esperar que se eliminem tais causas estruturais.

Esta questão, destas duas dimensões necessárias do combate à pobreza, também se liga à da relação entre a justiça e a caridade, um ponto fulcral da doutrina social da Igreja.

            A palavra “caridade” tem muitas vezes um sentido pejorativo, como simples assistencialismo. Não é esse o seu verdadeiro sentido. Afirma o Papa emérito Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate (n.1): «A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor — “caritas” — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta.»

            Mas importa salientar o que são deveres de justiça, que são um pressuposto da caridade. Quando falamos em erradicação da pobreza como violação dos direitos humanos, falamos de um dever de justiça, que pode ser exigido como tal, e não pode depender da simples boa vontade de uma ou mais pessoas. Também nesta perspetiva, de pouco valerá uma oferta a obras sociais da Igreja (que poderia ser movida pela caridade) quando não se paga um salário justo ou não se pagam os impostos legalmente devidos (que são deveres de justiça).

Afirma a este respeito o Papa emérito  Bento XVI, também na encíclica Caritas in veritate (n.6): «Em primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema próprio de justiça. A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é “meu”; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é “dele”, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso “dar” ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é “inseparável da caridade”, é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, “a medida mínima” dela, parte integrante daquele amor “por ações e em verdade” (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da “cidade do homem” segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.»

Ou seja, a caridade pressupõe a justiça, mas vai para além dela, porque só a caridade (corretamente entendida, como plena doação de si mesmo) permite alcançar a autêntica e completa harmonia social. Erradicar a pobreza enquanto carência de bens materiais básicos é uma exigência da justiça, mas há dimensões da pobreza e do sofrimento humano que só a caridade, mais do que qualquer medida política, permite enfrentar.

Diz, a este respeito, o Papa emérito Bento XVI na encíclica Deus caritas est (n. 28):

«O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo.  Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda».

Recordo a propósito a ação de Santa Teresa de Calcutá, que ia muito para além da distribuição de alimentos. E vem também a propósito evocar as notícias que têm sido divulgadas sobre o plano do governo britânico para enfrentar a solidão como problema de saúde pública…

Este é um aspeto que torna oportuna a concretização do princípio da subsidiariedade, um princípio básico da doutrina social da Igreja, no âmbito da política social.

O Catecismo da Igreja Católica refere- se a esse princípio nestes termos (n. 186):

            «Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (“subsidium”) — e portanto de apoio, promoção e incremento — em relação às menores. Desse modo os corpos sociais intermédios podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outros entes sociais de nível superior, pelas quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, e por ver-se negar, ao fim e ao cabo, dignidade própria e espaço vital.»

            O princípio da subsidiariedade contraria uma conceção de Estado omnipresente, monopolista e centralizador, que suprime a liberdade, mas também a responsabilidade, das pessoas e dos grupos sociais menores. Mas também não se confunde com a conceção liberal do Estado mínimo. Estado supletivo, ou subsidiário, não é o Estado omisso ou indiferente, é o Estado que regula as iniciativas da sociedade civil em função do bem comum, as apoia quando o bem comum o exige e supre as suas insuficiências também quando o bem comum o exige. Em suma, não deve dizer-se: “quanto mais Estado, melhor”; mas também não deve dizer-se: “quanto menos Estado, melhor”.

            Será particularmente oportuno ter presente esse princípio quando se discutem questões relativas à reforma do Estado Social. Podemos dizer que na raiz do Estado Social está o princípio da solidariedade. O desafio da reforma do Estado Social deve passar não pela desvalorização do princípio da solidariedade que está na sua base, mas pela articulação desse princípio com o da subsidiariedade.

            As iniciativas da sociedade (entre elas as da Igreja) no âmbito da solidariedade social são marcadas pela proximidade das situações concretas, pela espontaneidade de quem é movido por ideais (é este o seu “dever ser”), pela caridade corretamente entendida, ou seja, pela doação plena de si mesmo. Toda a comunidade ganha com isso, com a genuinidade de uma motivação que não se impõe ou decreta. Não se trata, pois, apenas de poupar despesas ao Estado, mas de dar aquilo que o Estado, enquanto tal, não pode dar.

            A propósito das dimensões da pobreza que só a caridade como doação plena de si mesmo permite enfrentar, gostaria de partilhar convosco a impressão marcante que em mim deixou uma iniciativa que conheci por ocasião do último encontro das comissões justiça e paz europeias que decorreu em Barcelona.

            A igreja de Sant´Ana, monumento de estilo gótico, situa-se em pleno centro de Barcelona, numa zona hoje quase desprovida de residentes, repleta de lojas e hotéis. Os paroquianos residentes escasseiam e o destino de algumas igrejas em zonas como esta de outros países europeus tem sido a venda para outros fins que não o culto, por vezes até o de restaurantes ou bares. Neste contexto, a opção dos responsáveis da paróquia foi a de acolher durante doze horas por dia alguns dos poucos habitantes permanentes que permanecem nestas zonas, isto é, os “sem-abrigo”. Durante esse período, a igreja está aberta para os acolher, para lhes oferecer algum alimento, mas sobretudo para os escutar («escutar o clamor dos pobres», como diz o Papa Francisco na sua mensagem para este dia), para comungar das suas angústias e anseios. Mais do que algum apoio social que outras instituições prestam, e para as quais serão encaminhados se for necessário, é à escuta desses “sem-abrigo” que se dedicam os voluntários (com algum apoio profissional) que aí passam essas horas. “Hospital de campanha” - foi a designação escolhida para a iniciativa, como eco da conhecida imagem que o Papa Francisco tem usado para caracterizar a missão da Igreja hoje. O acolhimento decorre na própria igreja, não nalgum seu anexo, numa zona separada da do sacrário, mas não muito longe dele.

            O facto de o acolhimento ocorrer na própria igreja, e não noutro espaço que a paróquia também poderia ter disponível, é propositado e teologicamente fundamentado, de acordo com os responsáveis da iniciativa. Outros poderão não compreender esta escolha e ficar até escandalizados com a utilização do espaço da igreja para este fim, que, além do mais, exige acrescidos esforços dos serviços de limpeza. Ou pensar que a igreja se torna, assim, mais próxima de uma simples instituição de apoio social (uma simples ONG). A fundamentação teológica dessa opção de acolher os “sem-abrigo” na própria igreja foi-nos explicada deste modo: a porta da igreja deve ser uma só, a mesma porta serve para a liturgia e para a ação de amor aos pobres. Jesus está presente no sacrário e também está presente nos pobres; a eucaristia é o corpo de Jesus, como os pobres são a carne de Jesus.

            E também não é por acaso que esta ação de acolhimento e escuta decorre entre as imagens sacras que desde há séculos embelezam aquela igreja. A imagem da Pietá aí presente leva muitos daqueles pobres a identificar-se com Jesus morto acolhido pela sua mãe. Ou a pensar que um dia poderão estar no lugar de Maria como uma mãe que acolhe um filho sofredor. A ação deste “hospital de campanha” tem levado alguns dos feridos que nele são acolhidos (daqueles “sem-abrigo”) a aproximarem-se de Deus e dos sacramentos, ou das suas famílias de que há muito tempo estavam afastados; não todos certamente, porque o fenómeno dos “sem-abrigo” é, como é sabido, muito complexo e de difícil acompanhamento. O que nos disseram foi que estes, como os pobres que tocam o abismo do desespero, com frequência se tornam profundamente revoltados ou, então, profundamente religiosos. Pensando nestes frutos de conversão a Deus, é claro que esta ação se distingue bem da de uma simples ONG.

            Não digo que esta iniciativa seja um modelo a reproduzir em qualquer contexto, mas parece-me significativa e merecedora de reflexão neste Dia Mundial dos Pobres, em que somos convidados a escutar o seu clamor.

            Gostaria agora de sublinhar alguns aspetos da mensagem do Papa para este Dia.

            Nela se aborda a questão da colaboração com outras instituições, públicas ou privadas, unidas num mesmo propósito de solidariedade para com os pobres. Essa colaboração é enaltecida sem que com ela se deva perder o que é próprio da ação da Igreja. Afirma o Papa (n. 7): «Somos movidos pela fé e pelo imperativo da caridade, mas sabemos reconhecer outras formas de ajuda e solidariedade que se propõem, em parte, os mesmos objetivos; desde que não transcuremos aquilo que nos é próprio, ou seja, conduzir todos a Deus e à santidade».

            Sublinha-se a importância de nos colocarmos numa atitude de verdadeiro serviço, que dá ao pobre a primazia, e de evitar a tentação do protagonismo. Diz o Papa (n. 2) referindo-se aos pobres: «Necessitamos da escuta silenciosa para reconhecer a sua voz. Se nós falarmos demasiado, não conseguiremos escutá-los a eles. Muitas vezes, temo que tantas iniciativas, apesar de meritórias e necessárias, visem mais comprazer-nos a nós mesmos do que acolher verdadeiramente o clamor do pobre.» E diz também o Papa (n. 7): «Quando encontramos o modo para nos aproximar dos pobres, saibamos que a primazia compete a Ele (a Deus) que abriu os nossos olhos e o nosso coração à conversão. Não é de protagonismo que os pobres têm necessidade, mas de amor que sabe esconder-se e esquecer o bem realizado».

            O Papa quer que a celebração deste dia seja marcada pela alegria. Afirma (n. 6): «Muitos encontraram o calor duma casa, a alegria duma refeição festiva e a solidariedade de quantos quiseram compartilhar a mesa de forma simples e fraterna. Gostaria que, também neste ano e para o futuro, este Dia fosse celebrado sob o signo da alegria pela reencontrada capacidade de estar juntos. Rezar juntos em comunidade e compartilhar a refeição no dia de domingo é uma experiência que nos leva de volta à primitiva comunidade cristã, que o evangelista Lucas descreve em toda a sua originalidade e simplicidade: “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações. (…) Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” (At 2, 42.44-45)».

E a mensagem conclui com um apelo à evangelização: que este dia seja ocasião de uma nova evangelização. Mas não no sentido em que nos caiba a nós evangelizar os pobres; eles também nos evangelizam a nós. Afirma o Papa (n. 10): «Os pobres evangelizam-nos, ajudando-nos a descobrir cada dia a beleza do Evangelho. Não deixemos cair em saco roto esta oportunidade de graça. Neste dia, sintamo-nos todos devedores para com eles, a fim de que, estendendo reciprocamente as mãos uns para os outros, se realize o encontro salvífico que sustenta a fé, torna concreta a caridade e habilita a esperança a prosseguir segura no caminho rumo ao Senhor que vem.»

                                                                                                                                                                                                                           Coimbra, 18 de novembro de 2018

                                                                                                                                                                                                                              Pedro Maria Godinho Vaz Patto    

                                                                                                                                                                                                                Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz



[1] Comunicação apresentada na celebração do Dia Mundial dos Pobres que decorreu na diocese de Coimbra