Comissão Nacional Justiça e Paz

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NÃO HÁ UMA PROSTITUIÇÃO “BENIGNA” por Pedro Vaz Patto

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O motivo por que rejeito essa proposta de legalização da prostituição é, basicamente, este: a prostituição é, sempre, uma violação dos direitos humanos e uma afronta à dignidade da pessoa humana. Não há uma prostituição “benigna” (que seria a prostituição legal, com salvaguarda da saúde e dos direitos laborais da mulher prostituta, por oposição à prostituição clandestina). Os malefícios da prostituição são algo que lhe é intrínseco. Não basta reduzir os seus danos (como pretendem muitos dos que, em boa fé, defendem a legalização da prostituição), há que eliminá-los na sua raiz.

Porque a prostituição é sempre uma violação dos direitos humanos, intrinsecamente maléfica, também não basta erradicá-la de lugares públicos, da rua, e confiná-la a lugares mais recatados, como quem afasta o lixo da sua porta para outro local. Não é uma questão de decoro, ou de “mau aspeto”. É uma questão de violação dos direitos humanos que não deve ser tolerada onde quer que seja praticada. É claro que ninguém se sentirá confortável com a oferta da prostituição junto de sua casa. Mas enquanto o problema não for eliminado na sua raiz, também haverá sempre vizinhos incomodados, num ou noutro lugar, de uma ou de outra forma.

Eliminar o problema na sua raiz não depende essencialmente da ação policial ou judicial, depende, sobretudo, do apoio à reinserção social. Um apoio que não pode, obviamente, ser imposto, mas apenas proposto.

Mas queria, então, explicar-vos porque considero a prostituição intrinsecamente maligna (sempre uma violação dos direitos humanos) e porque rejeito a proposta da sua legalização. Talvez assim possamos também compreender o fenómeno da prostituição na sua essência, para além dos aspetos externos que nos incomodam.

As experiências de legalização da prostituição (da Holanda e da Alemanha, designadamente) revelaram resultados negativos em todos os aspetos. Vários relatórios policiais holandeses e um relatório do governo alemão, de 2007, reconhecem vários desses resultados negativos[1]. E muitas das mulheres vítimas da prostituição consideram que beneficiários dessa legalização são apenas os proxenetas (que por ela se bateram), agora promovidos a “empresários do sexo”.

Desde logo, porque poucas foram as pessoas que celebraram contratos de trabalho ao abrigo da legalização (e a garantia de direitos laborais foi apresentada como uma das justificações para a lei). Várias são as razões para que tal tenha acontecido.

Por um lado, porque quase nenhuma mulher quer registar no seu curriculum laboral o exercício da prostituição, como se este fizesse parte de uma carreira. Quase todas vêm tal exercício como uma ocupação temporária, que pretendem apagar e mudar o mais depressa possível, logo que surjam alternativas.

Por outro lado, porque um contrato de trabalho não comporta apenas direitos, também comporta deveres. E é natural que se receie que, a coberto desses deveres, a mulher que se prostitui fique impedida de rejeitar um cliente ou qualquer exigência desse cliente.

A legalização da prostituição incrementou esta atividade em geral (como será lógico), tornando-a das mais lucrativas (na Holanda, os rendimentos respetivos correspondem a cinco por cento do rendimento nacional), e incrementou o tráfico de pessoas com esse objetivo. Na Alemanha e na Holanda, as redes de tráfico estão infiltradas na prostituição legal, o que levou o presidente da câmara de Amesterdão a revogar nuitas das licenças concedidas a bordéis. É um dado hoje reconhecido pelas polícias de vários países que as redes de tráfico se dirigem preferencialmente aos países onde a prostituição é legal (como a Alemanha), muito mais do que àqueles onde ela não o é, e ainda menos se dirigem aos que punem a atividade do cliente (como a Suécia, onde, logicamente, a redução da procura acarreta a redução da oferta). É compreensível que a atividade das redes de tráfico seja mais facilmente oculta ou encoberta em países onde a prostituição é legal do que naqueles em que toda a exploração da prostituição não o é. Isso mesmo resulta do estudo mais completo sobre a questão até agora efetuado, que envolveu cento e cinquenta países (de Seo-Young Cho, Axel Dreher, Eric Neumayer, em World Development, vol 41, 2013, pgs. 67 a 98, acessível em www.prostitutionresearch.com).

A legalização da prostituição não é, pois, uma forma de combater ou limitar a prostituição forçada. É certo que se impõe a distinção entre as situações de tráfico de pessoas para exploração sexual das de lenocínio simples (distinção que só em parte corresponde à que separa a prostituição forçada da que não o é). Mas são ténues as fronteiras entre cada uma destas situações. Podemos dizer que elas representam diferentes graus, mais ou menos graves, de exploração e de violação da liberdade. Tendo em conta este contexto, parece claro que o tráfico de pessoas se combate mais facilmente quando qualquer forma de exploração da prostituição é perseguida criminalmente do que quando, a coberto de uma pretensa, mas frequentemente simulada (o que se compreende num contexto de grande carência sócio-económica) voluntariedade, dessa perseguição podem ser excluídas algumas formas dessa exploração. A legalização, como é óbvio, dá aos “empresários” que exploram pessoas nessa situação de carência (e que são a grande maioria) uma outra segurança e proteção. E nessas situações de carência não é de esperar que sejam as mulheres a denunciar as pressões de que são vítimas ou a desmascarar a pretensa voluntariedade. Por outro lado, a legalização da prostituição abre e expande o mercado. E – demonstra-o a experiência policial – é ilusório pensar que há dois mercados paralelos, um de prostituição forçada e outro de prostituição “voluntária”, ou que é possível separar esses mercados.

Com a legalização, a prostituição aumenta significativamente, como é lógico e demonstram vários estudos. Esse aumento também se dá na prostituição clandestina. Uma das razões para tal tem a ver com a vontade de evitar o controlo e a perda do anonimato que a legalização acarreta (como já acima referi, as mulheres prostitutas não querem perder o anonimato, porque esperam poder um dia mudar de vida, sem que permaneçam quaisquer vestígios do seu passado).

Um raciocínio análogo ao acima exposto quanto ao combate ao tráfico de pessoas para exploração sexual poderá também, de algum modo, ser oportuno ao enfrentar o argumento de que a legalização da prostituição permite um mais eficaz combate à prostituição de menores. Os dados empíricos demonstram o contrário. E há razões para isso. Também não há mercados inteiramente separados para a prostituição de adultos e a prostituição de menores. Uma percentagem muito significativa de mulheres começa a dedicar-se à prostituição ainda antes de atingir a maioridade. A prostituição de menores pode ser encarada, para este ramo de “negócio”, como um “investimento” que assegura ganhos futuros. E a legalização alarga, como vimos, o mercado e a potencialidade desses ganhos futuros. Por outro lado, não pode estabelecer-se uma barreira rígida, coincidente com a da idade da maioridade, para distinguir situações de prostituição “maligna” e voluntária ou “benigna”. Quando em anúncios de prostituição se publicitam os serviços de “jovens de dezoito anos” como chamariz para atrair clientes, é óbvio o perigo de por esta via se ocultar a prostituição de jovens menores de dezoito anos (e será assim tão diferente ter dezassete ou dezoito?).

A prática da prostituição acarreta, com grande frequência, danos físicos e psíquicos que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra atividade regular[2]. A violência associada à prostituição e os danos que ela acarreta para a saúde física e psíquica das suas vítimas também se incrementam com o incremento da prostituição que resulta da sua legalização. É assim porque não há uma prostituição “benigna”, nem a legalização a torna “benigna”. A prostituição (legal ou ilegal) é sempre a instrumentalização da pessoa, a sua redução a objeto de uma transação comercial. Não pode equiparar-se a qualquer outra prestação de trabalho ou de serviços. A sexualidade não pode ser desligada da pessoa (porque a pessoa é um corpo, não tem um corpo que possa alugar como quem aluga um objeto de sua propriedade). Ora, quando a pessoa é reduzida a objeto, a violência e o abuso tornam-se expectáveis[3]. Na prostituição, a pessoa é paga para fazer o que ela nunca faria de bom grado, ou outra pessoa nunca faria. É por isso que a prostituição é intrinsecamente “maligna”. O “cliente” da prostituição procura uma experiência de total controlo e domínio sobre outrem não uma relação de reciprocidade e respeito[4]. Reduzir uma pessoa a objeto é arrogar-se sobre ela os direitos que se têm sobre as coisas, mais do que os direitos que se têm no confronto com as pessoas. É por isso que a violência física e psicológica acompanha em regra a prática da prostituição, seja ela clandestina ou legal, e é por isso que a ocorrência de episódios de violência física ou psicológica aumenta (e não diminui, como se pretenderia) com a legalização da prostituição. Se essa violência é estrutural (e não ocasional), e se a legalização se traduz no incremento da prostituição, não pode esta deixar de se traduzir no aumento dessa violência.

Os perigos para a saúde pública (em particular, no que se refere à difusão da sida) que decorrem da prática da prostituição só desaparecem verdadeiramente quando se abandona a sua prática, não quando esta é legalizada ou promovida. Os controlos sanitários que se efetuam quando a prostituição é legalizada incidem sobre a mulher que se prostitui, não sobre o cliente, visam mais a proteção deste do que a daquela, visam impedir o contágio deste por aquela, e não o contrário. Por outro lado, as pressões do “mercado” (legal ou ilegal) e da concorrência acrescida (tanto maior quanto mais incrementada for a prática da prostituição) levam, muitas vezes, a mulher a aceitar a prática de relações sexuais sem o uso de preservativo (o qual, de qualquer modo, não é eficaz a cem por cento), a troco de uma maior remuneração ou sob a ameaça de violência. É ilusório pensar – salientam-no pessoas que conhecem e estudam o fenómeno – na mulher prostituta como uma pessoa dotada de um poder negocial que permita impor condições ao cliente e não se sujeitar a quaisquer desejos deste.

Dos malefícios da legalização da prostituição, eu gostaria de destacar o seguinte.

À legalização da prostituição não podem deixar de estar associados um sinal e uma mensagem cultural provindos do Estado. Esse sinal e essa mensagem vão no sentido da aprovação dessa prática, ou, pelo menos, de indiferença perante os seus malefícios. Ao legalizar a prostituição, o Estado transmite uma mensagem de aceitação da comercialização do corpo humano e da sexualidade humana (quando o corpo e a sexualidade não podem desligar-se da pessoa) e, portanto, de aceitação da degradação da pessoa a objeto. Esta mensagem não pode deixar de afetar, em particular junto das novas gerações, a consciência social e cultural do valor da dignidade da pessoa humana, em especial da mulher. Há quem fale, a este propósito, em “cultura da prostituição”. Difundir a ideia de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer e fruto de uma escolha livre a respeitar desvia as atenções da comunicação social e da opinião pública em geral a respeito das violências de que são vítimas as mulheres prostitutas e das situações dramáticas que conduzem a essa prática. O contexto cultural que assim se cria não serve de incentivo à mobilização do Estado, da sociedade civil e da opinião pública no sentido do apoio à reinserção social dessas mulheres. Se está em causa uma escolha supostamente livre e se estão garantidos os direitos laborais, nada haverá a fazer no sentido do apoio à mudança de atividade.

 Sei que, para justificar a legalização da prostituição, se invoca a liberdade de quem escolhe esta atividade sem coerções de qualquer tipo, assim como a diversidade de situações em que é exercida a prostituição, como se esta nem sempre representasse uma verdadeira exploração, pelo menos no plano económico.

A favor da legalização da prostituição, invoca-se a autonomia pessoal e a liberdade de escolha. No entanto, é na dignidade da pessoa (em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se funda a República Portuguesa) que assenta a tutela da sua liberdade e, por isso, o consentimento do próprio nunca pode servir para legitimar atentados a essa dignidade. Não é admissível a escravatura, mesmo que consentida, a mutilação genital feminina, mesmo que consentida, ou o trabalho em condições desumanas, mesmo que consentido[5]. A dignidade da pessoa humana, na célebre visão kantiana, impede que esta seja tratada (pelos outros ou por ela mesma) como meio e não como fim em si própria. A prostituição é certamente dos exemplos mais nítidos de redução da pessoa a objeto ou instrumento.

Por outro lado, é uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excecionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa atividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Não pode falar-se, nestes casos, em escolha livre. Recordo bem o que sempre ouvi à Drª Inês Fontinha (uma fonte de conhecimento sobre este fenómeno que não tem paralelo em Portugal e a quem não posso deixar de prestar homenagem): «nunca conheci nenhuma mulher que me disesse que queria ser prostituta». A alternativa para essas mulheres não é certamente uma carreira profissional mais ou menos gratificante. A alternativa é, quase sempre, a fome e a exclusão social. Na origem destas escolhas estão situações de acentuada vulnerabilidade, onde também se incluem a toxidodependência ou a ocorrência de abusos sexuais na infância e adolescência. Não é por acaso que, por exemplo, a grande maioria das mulheres que se prostituem na Alemanha provem dos países mais pobres da Europa de Leste. E - dizem-no vários estudos - cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem optaria por outra atividade se tal oportunidade lhes fosse concedida. Falar em liberdade de escolha nestas situações é fechar os olhos à realidade[6].

 Não será sempre assim... Mas as situações em que não é assim são uma minoria, são a exceção que confirma  a regra. E quando se elaboram leis, ou quando se legaliza uma atividade, é a regra que deve ser considerada, não a exceção. Ao fixar, por exemplo, a idade abaixo da qual o consentimento de um menor deixa de ser relevante, para efeitos de definição de crimes sexuais, no relacionamento sexual com um adulto, o legislador tem em conta o que é a regra no que se refere ao grau de maturidade dos jovens de acordo com a sua idade, não certamente o que poderá ocorrer num jovem de maturidade excecionalmente precoce. Ao legalizar, ou ilegalizar, a prostituição, o legislador há de ter em conta a regra, não a exceção; e a regra é o forte condicionamento da liberdade de quem a ela se dedica. Se assim não fizer, o risco que se corre é o de, em nome do respeito pela liberdade de opção, dar cobertura legal a situações que não são, na sua esmagadora maioria, expressão de autêntica liberdade. Legalizar a prostituição pensando nas poucas mulheres que a escolheram entre alternativas benéficas não é sensato, porque acaba por consagrar e consolidar uma prática que a maioria vive como uma opressão.

Para concluir, queria dizer o seguinte.

Não há (não pode haver) apenas a alternativa entre a prostituição clandestina e a prostituição legal. Não são (não podem ser) apenas estas as alternativas que o Estado deve oferecer às vítimas da prostituição. Há outras alternativas que passam pelo apoio à reinserção social dessas vítimas da prostituição; há outras alternativas, pelas quais essas mulheres acabarão por optar, não porque algo lhes seja imposto, mas apenas porque são apoiadas na concretização dessas opções. A alternativa à legalização da prostituição não será, assim, a atitude corrente de demissão e de “fechar os olhos” a um fenómeno que persiste e se expande. Como disse no início, o combate ao fenómeno não poderá centrar-se predominantemente na ação policial ou judicial, mas antes no apoio à reinserção social das vítimas da prostituição.

Lisboa, 13 de novembro de 2018

Pedro Vaz Patto



[1] Ver, por exemplo, Janice Raymond, Not a choice, not a job, Potomac Books, Washington, 2017, pgs. 79 a 120, e Julie Bindel, The pimping of prostitution, Palgrave Macmillan, Londres, 2017, pgs. 89 a 126

[2] Ver, por exemplo, Roger Mattews, Prostitution, Politics and Policy, Routledge-Cavendish, Oxford, 2008, pgs. 43 a 60, e Melissa Farley, «Bad for the Body, Bad for the Hearth - Prostitution Harms Women even if Legalized or Descriminalized», in Violence against Women, 2004, 10, pgs. 1087 a 1125

[3] Os crimes de violação e abuso sexual também se traduzem na redução da pessoa a objeto, precisamente porque a sexualidade não pode ser desligada da pessoa (daí a sua particular gravidade no confronto com outros crimes contra a liberdade, porque não é só esta que é afetada, também o é a dignidade da pessoa). Por isso, não é errado equiparar o trauma resultante desses crimes aos malefícios da prostituição (onde a pessoa também é reduzida a objeto) e muitas das suas vítimas falam, a propósito, em «ser paga para ser violada» (ver Melissa Farley, em www.prostitutionresearch).

 [4] Ver, a este respeito,  Stefano Ciccone, Essere Maschi. Tra potere e libertà, Rosenberg & Sellier, Turim, 2009, pgs. 39 a 47. Aí se afirma a respeito do homem “cliente”: «Posso acreditar que tenho poder e autonomia. Ao pagar, poupo as dificuldades da relação, tenho um contacto sexual sem nele investir, sem deixar que nela aflorem as minhas fragilidades, os meus medos, as minhas insuficiências, numa palavra, sem neles estar presente.»

[5] A vida também é um bem indisponível, como tem sido afirmado a propósito da discussão sobre a legalização da eutanásia.

[6] Um outro aspeto deve ser tido em conta. É frequente que a mulher prostituta desenvolva as chamadas estratégias de coping (ou “enfrentamento”) para resistir aos danos a que está sujeita. Negar esses danos e afirmar uma suposta liberdade de escolha pode fazer parte dessa estratégia, em ordem a “salvar a face”. Janice Raymond (Not a choice…, cit., pg. 23) cita a propósito o testemunho de uma “sobrevivente da prostituição”: se não dissesse às pessoas que a prostituição era uma escolha livre, «como poderia olhar-me ao espelho»?