Ética e Criminalidade Económica e Financeira
A Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra e a Associação Cristã de Empresários e Gestores, Núcleo da Região de Coimbra, na sequência de debate ocorrido no dia 24 de Junho de 2019, no Instituto Justiça e Paz de Coimbra, entendem como pertinente, e justo, formular as seguintes conclusões:
1 - Um olhar retrospectivo sobe a evolução do nosso sistema político ao longo dos anos imprime a ideia duma sucessiva colonização e parcial apropriação do aparelho de Estado, instrumentalizando-o ao serviço de interesses de grupo e/ou meramente privados, em claro detrimento do interesse público e do bem comum. Neste sentido, a patrimonialização de vastos sectores da área da administração pública vem, sucessivamente, perdendo a natureza de uma mera deriva conjuntural, assumindo--se como uma característica inerente ao quadro social e político actual
2 - Em todas as áreas existem exemplos de um universo de decisões desreguladas ou ao arrepio de um eficaz escrutínio e transparência, muitas vezes tendo por base um complexo e contraditório normativo técnico-jurídico (logo pouco eficaz e com sucessivas alterações) que nos afecta – como sucedeu com grandes investimentos estruturais, nomeadamente em infra-estruturas e aquisições de bens e serviços para o Estado, em parcerias publico privadas, acesso a informação privilegiada, licenciamentos diversos, atribuição de subsídios, empréstimos ou falências fraudulentas.
3 - O sistema financeiro opera hoje com fundamento num modelo de negócios focado no lucro a qualquer preço, centrado nos interesses de grandes e accionistas (capital) sem rosto e/ou de executivos, em lugar de se preocupar em servir as pessoas e a economia nacional e local. A actividade financeira, sobretudo bancária que, anteriormente, prestava um serviço de interesse geral, propiciando o investimento e a criação de riqueza, transformou-se, muitas vezes, num negócio indiferente a qualquer interesse e prioridade públicos.
Os “guardiões do templo” do sistema financeiro transformaram-se em croupiers num casino gigante. Não interessa como se lucra, o que interessa é o lucro, mesmo que resultante de muito discutíveis genialidades ou (des)equilíbrio contabilístico através de práticas ilícitas e especulativas.
4 - Uma outra realidade prende-se com a forma como alguns gestores e quadros de grandes empresas têm sucessivamente violado deveres básicos como a lealdade e responsabilidade, sem os quais não pode existir confiança institucional e pessoal, também, para os seus trabalhadores e “stakeholders”. Efectivamente, a acção daquele que está investido na administração de bens alheios, para além das exigências que derivam da competência, implica algo que não é mais do que um imperativo: a existência dum dever de lealdade para com todos aqueles que depositaram as suas expectativas no pressuposto de lealdade e seriedade na forma de gerir um património que não é o seu.
5 - O grau de anomia ética existente é de tal forma intenso que se transita dos grandes grupos económicos para o exercício de funções políticas ou mesmo de soberania, e destes titulares para os grandes grupos económicos numa confusão de interesses e papéis. Adjudicam-se quase como norma, sem fundamento claro e de forma repetida, contratos sem concurso ou concursos em que a informação não é igual para todos os concorrentes. A administração pública, incluindo as empresas públicas, é muitas vezes gerida como “coutadas privadas ou ao serviço de interesses de grupo” reservadas aos titulares de blocos de interesses cujos lugares são repartidos de acordo com critérios de mero oportunismo pragmático.
6 - Ao longo dos últimos anos todo um conglomerado de actos ilícitos, fruto, muitas vezes, duma profunda corrupção, gerou buracos financeiros ou, mais prosaicamente imparidades, que agora somos chamados a preencher de forma directa ou indirecta. Bem como impactos sobre os recursos naturais disponíveis. Infelizmente o preço a pagar pela irresponsabilidade recai também sobre as gerações futuras que vêm penhoradas as suas legítimas expectativas.
Recordemos que só o sector bancário e a necessidade da sua estabilização implicam um preço superior a vinte e um mil milhões de Euros.
Falamos de montantes que, num país exangue, seriam essenciais para assegurar o futuro em áreas tao importantes como a os serviços (saúde, educação, segurança social, etc.) ou promover o investimento público, e privado, criando condições para um funcionamento saudável da economia e um fortalecimento do tecido social.
7 - A existência dum vasto catálogo e universo de pessoas e práticas, que nos últimos anos, tudo indicia que se dedicaram a práticas ilegais e à revelia do interesse público, convoca a necessidade de se mudarem práticas, e rotinas, eivadas duma burocracia ineficiente; a importância de leis e normas técnico-jurídicas reguladoras simples, e com leituras não contraditórias; a existência de eficazes instrumentos de monitorização e avaliação, possibilitando a transparência no funcionamento das instituições.
Por seu turno impõe-se uma investigação e repressão eficientes deste tipo de criminalidade, como aliás de qualquer outro, e, nesse objectivo entrecruzam-se diversos eixos, igualmente importantes, que vão desde os meios, que actualmente são reduzidos para a complexidade das tarefas (faltam peritos, investigadores, magistrados), até à inultrapassável necessidade de especialização, quer dos Magistrados, quer dos próprios Tribunais.
Por igual forma começa a ser patente a desadequação do processo penal, formatado para outras realidades, que não a da complexidade da criminalidade organizada e económico financeira, quando não a falta de preparação de alguns magistrados para esta criminalidade e a inadequação da gestão processual.Não é compaginável com qualquer finalidade de prevenção geral, ou especial, a existência de processos que demoram anos, quando não décadas, a serem investigados e julgados ou o prolongar de fases processuais que se arrasam no tempo sem qualquer justificação.
8 - Sublinhe-se ainda a importância que assumem os contrapoderes como factores de equilíbrio e transparência numa sociedade democrática.
Uma sociedade civil forte e organizada; uma opinião pública consciente e mobilizada; um jornalismo sem dependências, clientelas, independente e forte; entidades reguladoras independentes e eficientes, e estruturas de monotorização e avaliação, são factores essenciais para a existência dum sistema democrático digno um Estado de Direito moderno.
9 - Todo este panorama faz-nos reler as palavras do Papa Francisco no Evangellium Gaudium quando sublinha que a ambição do poder e do ter não conhece limites e que importa dizer não a um dinheiro que governa em vez de servir.
Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa humana à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão.
Todavia, afirma novamente Francisco a ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. […..] Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar!
Coimbra, 24 de Junho de 2019