Encontramo-nos de novo no início de mais um ano. Como Comissão Nacional Justiça e Paz, queremos olhá-lo com os olhos de esperança que a mensagem do papa nos oferece neste Dia Mundial da Paz.
A mensagem apresenta-nos o diálogo entre gerações, a educação e o trabalho como instrumentos para se construir uma paz duradoura.
Certamente que não faltam diálogos construtivos entre as nações, mas a paz não depende apenas das nações, depende também das ações, opções e corações dentro das nossas portas lusas através de um diálogo transparente ao nível político, económico e social, como “empenho compartilhado”, como diz o papa na sua mensagem.
E o papa não se fica por estas realidades macro, mas chega a cada um de nós chamando-nos a sermos artesãos de paz, “partindo do próprio coração e das relações em família”.
O primeiro instrumento é o diálogo entre as gerações, baseado na realização de projetos compartilhados como resposta alternativa à “indiferença egoísta e [a]o protesto violento”.
Percebemos que a população portuguesa continua a concentrar-se nos centros urbanos, nomeadamente nos maiores, onde são visíveis em todas as gerações muitas pessoas juntas e sozinhas atacadas pela solidão e pelo isolamento, agravados ainda mais pela crise pandémica. Mas não faltam expressões ricas de gestos (e não palavras) solidários, de generosidade desmedida, de testemunhos que poderiam ser escritos como os “atos dos apóstolos” do nosso tempo. Dá-los a conhecer é também um contributo para o diálogo entre as gerações.
Estando nós a um mês de eleições para a Assembleia da República, o exercício do diálogo podia ser um passo importante para, nas diferenças que são próprias da democracia, se poder falar de ideias, projetos e propostas sem se pôr em causa as pessoas. Urge uma “política sã, que não se contenta em administrar o existente «com remendos ou soluções rápidas», mas se presta, como forma eminente de amor pelo outro, à busca de projetos compartilhados e sustentáveis”.
Abrir um diálogo sério entre as gerações sobre a falta de perspetivas laborais dignas, a ameaça constante do desemprego, as cidades que escorraçam as pessoas para as periferias, as implicações do acentuado envelhecimento da população, o baixíssimo número de nascimentos como se estivéssemos em estado de guerra.
Vive-se uma sofreguidão de valorização dos jovens, esquecendo-nos que “Sem as raízes, como poderiam as árvores crescer e dar fruto?“, deixando aos mais velhos um sentimento de inutilidade, de peso social, abrindo caminho para processos de suicídio e eutanásia.
Urge uma mudança de rumo diante “da atual crise ética e sócio-ambiental” para se encontrarem verdadeiras respostas dialogadas entre o mundo do trabalho e o mundo da educação.
O Segundo instrumento para a paz, apresentado pelo papa, é “a educação como motor da paz” porque é um “fator de liberdade, responsabilidade e desenvolvimento”. Não é difícil perceber quanto a educação tem sido vítima das crises económicas, financeiras, sociais e culturais, onde os orçamentos educativos são sempre esmifrados não se percebendo que são geradores de mais desigualdades. Continua a olhar-se a educação como uma despesa e não como um investimento. É que "Investir na instrução e educação das novas gerações é a estrada mestra que as leva, mediante uma específica preparação, a ocupar com proveito um justo lugar no mundo do trabalho."
É também pela educação que se poderá olhar de forma consciente e responsável para os desafios das alterações climáticas, da inteligência artificial, da híper-dependência tecnológica a resvalar para o foro patológico, das escolas multiculturais, multiétnicas e multirreligiosas... pois é através da educação que se criam “os alicerces duma sociedade coesa, civil, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso”.
O investimento na educação deve implicar um maior empenho na escola inclusiva capaz de abraçar um grau de flexibilidade que permita diversificar as respostas tendo em vista o sucesso de todos sem comprometer a exigência.
Ao falar-se de educação, esta não deve abranger apenas a exclusividade do Estado, mas permitir que outras respostas possam ser tidas em conta de forma verdadeiramente livre para todos, sem complexos. É que “um país cresce quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística e a cultura tecnológica, a cultura económica e a cultura da família, e a cultura dos meios de comunicação”.
Temos mesmo de entrar noutra onda dialógica, num novo paradigma e de forma ampla, partindo das instituições mais abertas, encetar um trabalho de diálogo partindo do pacto educativo lançado pelo papa: “um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições, as religiões, os governantes, a humanidade inteira na formação de pessoas maduras”; sendo promotores da ecologia integral.
E o terceiro instrumento para se construir a paz é o trabalho como “plena realização da dignidade humana”. O trabalho é inerente ao nosso ser pessoa, é “expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém”.
Mas também sabemos, por estudos bem recentes, que não basta ter um trabalho, pois existe um grupo significativo de pobres com trabalho. Portanto, o trabalho deve ser remunerado de forma justa e não depender de artimanhas legais que o tornam precário.
Um outro aspeto do trabalho que assume um papel cada vez mais relevante no nosso país é a necessidade do trabalho dos imigrantes, mão de obra quase sempre mais barata, vivendo “em condições muito precárias para eles mesmos e suas famílias, expostos a várias formas de escravidão e desprovidos dum sistema de previdência que os proteja”.
Talvez bastasse termos presente a Regra de Ouro comum a todas as religiões, “Faz aos outros o que gostaria que fizessem a ti”, e veríamos florescer o trabalho digno.
“Temos de unir as ideias e os esforços para criar as condições e inventar soluções a fim de que cada ser humano em idade produtiva tenha a possibilidade, com o seu trabalho, de contribuir para a vida da família e da sociedade”.
É nesta ótica de diálogo que será possível ter presente no topo dos objetivos das empresas a responsabilidade social, não apenas como um propósito que fica bem, mas que elas sejam “lugares onde se cultiva a dignidade humana, participando por sua vez na construção da paz”.
E o papel da política não pode ser relegado a uma realidade que anda a reboque de interesses menos nobres, mas que seja um verdadeiro e generoso serviço capaz de garantir os elementares direitos de todos.
E, para os trabalhadores e empresários católicos, é urgente enfrentar um verdadeiro diálogo indo às fontes da doutrina social da Igreja, cientes de que a escuta recíproca pode e deve dar frutos que serão generosa riqueza para o bem comum.
A mensagem do papa termina com um apelo a “caminharmos, juntos”(...) “com coragem e criatividade”, para que “sejam cada vez mais numerosas as pessoas que, sem fazer rumor, com humildade e tenacidade, se tornam dia a dia artesãs de paz”.
Lisboa, 30 de dezembro de 2021
A Comissão Nacional Justiça e Paz