Comissão Nacional Justiça e Paz

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POR UM DESCANSO QUE SOBREVIVA ÀS FÉRIAS

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O tempo de férias está a chegar, ou já chegou, para muitos. Para alguns, é, por isso, tempo de trabalho redobrado. As férias de uns são, como se sabe, o trabalho de outros. E há ainda aqueles para quem este não é tempo de férias nem de trabalho.

Não é invulgar as férias serem um antónimo de descanso, um acréscimo de trabalho. Vivemos, aliás, um período histórico em que as fronteiras entre trabalho e descanso se têm diluído. Esse foi para muitos trabalhadores um efeito da crise mundial de saúde pública. O trabalho à distância, possível graças à Internet e às novas tecnologias, veio alterar – ou acelerar a alteração – dos ritmos convencionais, estabelecendo um contínuo onde antes havia barreiras. O emprego ocupou a casa, que era até há pouco lugar de descanso, mesmo que algo permeável a algum trabalho ocasional.

Os ecrãs, como inúmeros especialistas, particularmente neurologistas, não têm cessado de apontar, tornaram-se um grave factor de perturbação dos momentos de descanso. Eles estão na origem da privação aguda ou crónica do sono, designadamente de crianças e adolescentes, como transmitem os resultados de diversas investigações. As notificações constantes das redes sociais disputam a atenção de todos, sobressaltando os que repousam ou acordando os que dormem. “Os ecrãs constituem uma conexão permanente com um mundo que nunca dorme, no qual o sol nunca se deita” [1]. O sossego parece impossível.

E, no entanto, “só avança quem descansa”, como diz o título de uma obra do Padre Vasco Pinto de Magalhães [2]. Numa das entrevistas que encerram o livro, o autor observa que “o tempo de férias pode ser muito ambíguo, porque é uma paragem no trabalho que às vezes visa mais o descanso físico e psicológico do que o descanso espiritual” e explica que, de facto, “o que nos descansa é o equilíbrio, a boa consciência e não se pode descansar uma parte sem a outra”. O que sucede é que, muitas vezes, “não se descansa nada nas férias porque se está cheio de pressa de fazer coisas”. O logro está, portanto, segundo o autor, na circunstância de “a pressa e o medo ou ansiedade” se conjugarem para impedir qualquer descanso.

A imprensa dá, amiúde, testemunho da existência dessa dificuldade em relação ao descanso nas férias, de cada vez que dá conta do nível de desassossego em que se transformaram ou que julga necessário dar conselhos sobre o que se impõe fazer para alcançar um módico de serenidade.

Aos crentes, ofereceu Santa Teresa de Ávila uma sábia recomendação:

“Nada te inquiete / nada te assuste / tudo passa / Deus não muda / a paciência / tudo alcança / quem a Deus tem / nada lhe falta / Só Deus basta” [3].

Vasco Pinto de Magalhães di-lo de outro modo: “O cristão deveria estar sempre consciente da presença de Deus para viver descansado. Descansar é um treino para o descanso eterno, que é o céu, e esse é o nosso objectivo na vida. O nosso objectivo não é trabalhar, mas sim trabalhar para estar cada vez mais descansado, mais equilibrado, mais saudável, mais em Deus”. Ou seja: “Aquilo que mais nos descansa é uma relação saudável com outra pessoa, o sentir-se amado, o poder ser eu perante uma pessoa sem ter de me estar a defender, a mascarar ou a arranjar conversa, e isso é o que acontece com Deus”.

No trabalho ou nas férias, o que importa que esteja no horizonte é o descanso, ainda que estes tempos o procurem ocultar. A ansiedade e o stress e a exaustão não têm de ser fatalidades que, tantas vezes sem sucesso, se tentam esquecer durante algumas semanas estivais.

O que vale a pena é “uma revolução temporal que permita dar início a um tempo completamente diferente”, como preconiza o filósofo Byung-Chul Han [4]. Constata ele que “hoje, não temos outro tempo que não seja o tempo de trabalho”, considerando que perdemos há muito o tempo de festa. “O fim do dia de trabalho, enquanto véspera da festa, anuncia um tempo sagrado. Se se abolir a fronteira ou o limite que separa o sagrado do profano, nada mais resta do que o banal e o quotidiano, ou seja, o simples tempo de trabalho”. É premente que o domingo seja plenamente recuperado como tempo de descanso, ele tem de ser resgatado do tempo “explorado pelo imperativo do desempenho e da eficiência”.

Se, como Byung-Chul Han afirma, “a política temporal do neoliberalismo aboliu por completo o tempo do outro, a dádiva”, o que agora “é necessário é uma política temporal diferente. Ao contrário do tempo do eu, que nos isola e separa, o tempo do outro cria a comunidade, ou melhor, o tempo comum, que é o tempo bom”. O “tempo bom” é, pois, o que contribui para reforçar os laços com a família, com os amigos, com todos companheiros de caminho.

É essencial mudar a relação com o tempo. “É importante que o verbo descansar seja conjugado em todos os tempos e modos ao longo do ano porque descansar é uma afirmação de soberania”, explicou o Padre João Aguiar Campos [5]: “Soberania sobre a criação. Soberania sobre nós e soberania sobre a tentação do ter, possuir, fazer e acumular. É preciso afirmar a soberania do ser para o outro, para mim e para Deus”.

Bom descanso.

[1] “Entretien avec Cynthia Fleury – L’empire de la lumière”. Philosophie Magazine. Hors-série n.º 56. Hiver 2023.

[2] Secretariado Nacional do Apostolado da Oração. 2019 (7.ª edição)

[3] Seta de Fogo. 22 Poemas. Assírio & Alvim, 2010

[4] Capitalismo e pulsão de morte. Relógio d’Água, 2023

[5] “O descanso é um caminho”, entrevista concedida a Luís Filipe Santos. Agência Ecclesia, 10 de Agosto de 2018. Disponível em: https://agencia.ecclesia.pt/portal/o-descanso-e-um-caminho-2/