Vivemos esta Quaresma no meio de muitas inquietações. A Humanidade conseguiu alcançar níveis de progresso que deveriam possibilitar uma vida mais justa e mais fraterna para todos e, no entanto, vemos como essa vida não é uma realidade para um número cada vez maior de pessoas. As desigualdades não só persistem como aumentam, fazendo com que cada vez menos pessoas tenham mais, e mais pessoas tenham menos. A constatação desta realidade não nos pode deixar indiferentes e a interpelação que ela causa pode ser vista como oportunidade que traduz a consciência de sabermos que não é este o caminho que queremos trilhar no futuro.
Na verdade, vivemos um momento em que somos chamados a tomar decisões muito importantes, decisões que marcarão certamente a sociedade que estamos a construir e a Humanidade que queremos ser. Quando o futuro se apresenta assim tão interpelante e o presente nos exige respostas claras e convictas, muitos podem cair na tentação da paralisia, da desistência ou do medo. No entanto, sabemos que esses não são bons conselheiros na hora das decisões, e esta que estamos a viver é certamente uma dessas horas, quer ao nível internacional, quer, também, ao nível do nosso país.
Por isso, este é o tempo oportuno para olharmos a realidade e a vida, a de cada um, a de todos, a das nossas comunidades, de um modo que permita discernir nela aquela Presença que nunca a deixou de habitar e na qual podemos encontrar os sinais de esperança que nos façam ousar as transformações que sabemos ser necessárias.
Na mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma de 2024 - intitulada Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade, encontramos um claro e convicto convite a escutar a voz de Deus e a renovarmos a experiência de encontro com Ele. Para isso somos convidados a dirigirmo-nos ao deserto e a parar. Este convite pode parecer estranho se não for corretamente entendido. O deserto não significa uma fuga da realidade, nem dos problemas, ele não comporta um convite ao alheamento, pelo contrário, é um convite a olhar a realidade a partir dessa mesma Presença que a habita:
“A fim de ser concreta também a nossa Quaresma, o primeiro passo é querer ver a realidade. Quando o Senhor, da sarça ardente, atraiu Moisés e lhe falou, revelou-Se logo como um Deus que vê e sobretudo escuta: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar das mãos dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3, 7-8,). Também hoje o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu. Perguntemo-nos: E chega também a nós? Mexe connosco? Comove-nos? Há muitos fatores que nos afastam uns dos outros, negando a fraternidade que originariamente nos une.”
É para que essas perguntas possam claramente ressoar em nós que somos convidados à ‘paragem do deserto’ para realizarmos um profundo exercício de encontro e de escuta. Encontro com Deus e com aqueles com quem Ele se quer encontrar, e que muitas vezes não chegam a ouvir o convite devido aos muitos ruídos. E escuta de Deus e daquilo e daqueles que Ele escuta. O deserto pode ser assim, “o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido.”
Que a mensagem para esta Quaresma faça um apelo tão claro à liberdade é motivo que a CNJP quer destacar, quando como país nos preparamos para celebrar o cinquentenário do 25 de abril, realidade configuradora da nossa atual identidade. Como se pode ler na mensagem, o chamamento para a liberdade constitui um vigoroso apelo que não se pode reduzir a um mero acontecimento, mas que se constrói e amadurece ao longo do caminho. Nesse sentido, esta Quaresma é, também para nós, um momento para olharmos o caminho percorrido ao longo destes 50 anos e de perspetivarmos o que queremos percorrer. Que país construímos e que país queremos construir? Como cuidamos uns dos outros? Como promovemos o bem comum? Parece-nos que estas e outras perguntas também não podem deixar de ser formuladas e respondidas se quisermos ser protagonistas da construção do mundo novo a que a mensagem nos convida.
A Quaresma surge, então, como um tempo de paragem para a ação; um tempo de oração, esmola e jejum, “que não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura e esvaziamento”, possibilitando-nos a libertação dos ídolos que nos tornam pesados e dos apegos que nos aprisionam; um tempo de decisões pessoais e comunitárias, continuando a aprofundar a forma sinodal de ser Igreja; um tempo “de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado.” E por isso e para isso, o convite que Francisco inscreve na mensagem é claro e veemente: “Convido toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor.”
O Papa Francisco termina a mensagem com um apelo à esperança, também ela entendida como uma ação que antecipa e começa a fazer acontecer já hoje o futuro esperado:
“Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim». É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente.”
É a esta esperança que a CNJP também se associa, convidando todos à coragem e à ousadia de pensar e agir assim.
Lisboa, 14 de março de 2024
A Comissão Nacional Justiça e Paz