Comissão Nacional Justiça e Paz

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Legal, mas imoral

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Um relatório da O.N.G. Oxfam recentemente publicado veio reafirmar o que já outros estudos tinham revelado. A humanidade tem conhecido nas últimas décadas um crescimento económico notável: mais do que duplicou nos últimos trinta anos, em média mais em países outrora de mais baixos rendimentos (como a China e a Índia). De 1990 a 2010 a percentagem da população mundial a viver em situação de extrema pobreza passou de 36 para 16. No entanto, os benefícios desse crescimento não vêm sendo repartidos de forma igual, ou sequer equilibrada. Cerca de metade dos benefícios desse crescimento tem recaído sobre uma pequena percentagem da população mundial (cerca de 1 por cento). Essa pequena maioria (segundo dados do banco Crédit Suisse) passou a deter uma riqueza superior à de toda a restante população mundial (os outros 99 por cento). A percentagem da riqueza mundial auferida pelas sessenta e duas pessoas mais ricas aumentou 44 por cento desde 2010. Os níveis de desigualdade vêm crescendo e atingem um patamar sem equivalente nos últimos cem anos.

Há quem não se sinta chocado com estes dados, colocando em relevo, sobretudo, os progressos na redução dos níveis de pobreza absoluta. Seria a “política da inveja“ a contestar o aumento das desigualdades quando esses níveis de pobreza absoluta se vão reduzindo. Mas, respondem os autores do relatório em questão, se a riqueza criada fosse repartida de forma mais equilibrada, a pobreza teria descido muito mais: se as desigualdades não tivessem aumentado, teriam sido outros 200 milhões de pessoas a sair da pobreza, e se os pobres beneficiassem mais com o crescimento económico do que os ricos, teriam sido outros 700 milhões a sair da pobreza. A injustiça do sistema não pode deixar-nos indiferentes: não pode dizer-se que mais de metade da riqueza mundial se fica a dever à iniciativa e trabalho de um por cento da população, sem contributo dos restantes. Uma sociedade tão desigual não pode ser coesa, com um sentido de pertença comunitária partilhado. Não basta, pois, dizer que a longo prazo (sendo que no longo prazo, «todos estaremos mortos», como já alguém dizia), de forma automática, todos acabarão por beneficiar com o crescimento económico, como diz a tese da “recaída favorável” (ou “trickle dowm effect”), já denunciada pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium.

Uma das principais razões desta crescente desigualdade – afirma também o mencionado relatório - decorre das injustiças dos sistemas fiscais: a menor tributação dos rendimentos do capital em relação os rendimentos do trabalho e, em particular, os chamados “paraísos fiscais” (ou “off shores”). Estes pequenos países ou territórios, com muito baixa tributação, concentram rendimentos equivalentes ao P.I.B. da Alemanha e do Reino Unido juntos. Cerca de 90 por cento das 200 maiores empresas mundiais declara rendimentos em “paraísos fiscais”. Em 2014, os rendimentos aí declarados foram quatro vezes mais elevados do que em 2011. São as maiores empresas, dotadas de qualificados juristas, as que mais beneficiam com este sistema, criando subsidiárias de fachada que lhes permitem declarar lucros em locais que nada têm a ver com aqueles onde foram gerados (sendo que estes assim perdem avultadas receitas). 

As comissões Justiça e Paz europeias escolheram esta problemática (a desigualdade crescente e a tributação justa) como objeto da sua ação concertada deste ano. Cientes de que as soluções só poderão ser encontradas também através de uma ação concertada dos vários governos, nos planos europeu e mundial, apelam à concretização de projetos já lançados, no âmbito da O.C.D.E (o projeto “BEPS”) e da União Europeia, que permitam combater as disfunções e lacunas dos sistemas vigentes, através de uma maior harmonização que evite o “nivelamento por baixo” (o “dumping” fiscal), e através do fim dos “paraísos fiscais”.

Está em causa a justiça de um sistema que permite (contra toda a lógica da progressividade) que pagam menos os que mais ganham. E permite que estes se sirvam de instrumentos que sem ser ilegais, são certamente imorais.     

Pedro Vaz Patto