Já várias vezes ouvi a pessoas que defendem a legalização da eutanásia que esta deve restringir-se a casos excecionais e extremos, a situações de doença terminal e sofrimento insuportável. A lei deverá estabelecer com rigor um quadro bem delimitado e não pode considerar-se à partida que ela não será respeitada. A legalização da eutanásia será, de qualquer modo, uma exigência do respeito pela autonomia.
A prática dos países que legalizaram a eutanásia revela, porém, que essa legalização nunca se restringiu a casos excecionais e extremos. Vão-se sucedendo passos sempre no sentido de um alargamento progressivo do campo de aplicação dessa legalização, de facto ou de direito. A imagem da rampa deslizante tem aqui plena aplicação: começamos a descer em plano inclinado e não conseguimos travar a descida. Ou a de um dique que é derrubado sem que a enxurrada de água possa ser contida. Ou a de uma janela que é aberta, sem que se consiga evitar a força de uma ventania. Ou de um alicerce de um edifício que é destruído sem que se consiga evitar, mais tarde ou mais cedo, a derrocada desse edifício. Neste caso, o alicerce é o interdito de matar (não matarás) em que assenta uma civilização. A partir da quebra desse interdito, as consequências serão sempre desastrosas. Não se trata de um fantasma alarmista, mas de uma decorrência lógica e previsível. A rampa deslizante pode surgir a partir de uma interpretação alargada de conceitos indeterminados (“sofrimento intolerável”, por exemplo), da dificuldade de controlo da legalidade (não se conhecem condenações pela prática da eutanásia fora do quadro legal, apesar de esta ser frequente, e isso explica-se, em grande medida, pelo clima de permissividade que decorre necessariamente da quebra do interdito de matar) e da sucessão de leis cada vez mais permissivas (como se vem verificando na Holanda e na Bélgica).
Uma notícia recente, de há poucas semanas, vem confirmar tudo isto.
Os ministros holandeses da Saúde e da Justiça apresentaram no Parlamento uma proposta de alargamento da legalização da eutanásia e suicídio assistido a situação de pessoas idosas que considerem que a sua vida se «completou» e deixou, por isso, de ter sentido. Explicam esses proponentes que assim se contemplam situações de perda de autonomia e mobilidade, de perda de dignidade, de solidão, de cansaço de viver. Em suma, situações que presenciamos quando ouvimos idosos dizer: «já vivi o que tinha a viver, já não estou aqui a fazer nada». Estamos, pois, fora do âmbito de qualquer doença, mais ou menos dolorosa, terminal ou não terminal.
A proposta não é inédita. Uma iniciativa legislativa de cidadãos no sentido da legalização da eutanásia a pedido de qualquer pessoa de idade superior a setenta anos já tinha sido, há alguns anos, apresentada no Parlamento holandês. Há casos conhecidos de prática da eutanásia, na Holanda, em pessoas “cansadas de viver”. Na Suiça também há quem proponha o alargamento da legalização do suicídio assistido para além das situações de doença. Contra esta “banalização da morte” reagiu recentemente um documento da comissão Justiça e Paz suiça.
Tudo isto surge como consequência lógica e previsível. Pois se a legalização da eutanásia e do suicídio assistido são uma exigência do respeito pela autonomia, que prevalece sobre o valor da vida (quando, pelo contrário, deve ser esta a prevalecer, pois a vida é a fonte e raiz da autonomia), porque é que tal legalização há de restringir-se a situações de doença terminal, ou a quaisquer situações excecionais?. Bastará respeitar a vontade de quem requer a eutanásia ou quer suicidar-se.
Mas, como lembrou a propósito desta proposta dos ministros holandeses, o rabino-chefe da Holanda, Benjamim Jacob, muitos idososos exprimem a vontade de morrer em determinado momento, como o da morte do cônjuge, mas mudam tal propósito algum tempo depois, quando encontram apoio da família e da sociedade.
Num tempo em que várias instâncias afirma querer valorizar o papel dos idosos na sociedade, até com a celebração do ano do envelhecimento ativo, propostas como estas transmitem (mesmo que não seja essa a intenção dos proponentes) uma mensagem cultural radicalmente oposta a essa: que a vida dos idosos perde dignidade, é um peso, para eles e para os outros; a “cultura do descartável”, de que fala o Papa Francisco, na sua plena expressão. Quando o que importa sublinhar é que a vida do idoso tem valor até ao fim (mesmo que ele diga ou pense o contrário), não vai perdendo valor com a perda das suas capacidades.
Nada disto pode ser ignorado quando se fala em legalizar a eutanásia apenas em situações excecionais. Quando se derruba o alicerce, o edifício há de cair...
Pedro Vaz Patto