Quando morre um homem bom o mundo fica mais pobre. Hoje, Portugal e a sua Igreja perderam um desses homens que nos fazem falta: D. António Francisco, o bispo do Porto. Reconhecidamente um homem bom.
O pastor que escolhera como lema episcopal “Nas tuas mãos” morreu, inesperadamente, de ataque cardíaco, quando nada o fazia prever, deixando em estado de choque todos os que com ele conviveram nos últimos dias como se a sua divisa tivesse sido integralmente cumprida. E o primeiro comentário das mais variadas bocas foi exactamente este repetitivo, mas genuíno, perdemos “um homem bom”. O verdadeiro Pastor com cheiro a ovelhas, que o Papa Francisco gostava que fosse a marca de todos os bispos.
Um homem de uma simplicidade intocável desde o tempo da sua infância em Cinfães, mas que a sabedoria, adquirida nos tempos dos estudos de Sociologia, Filosofia e Teologia em Paris, alargara a visão e a experiência de vida enriquecera, permitindo-lhe uma coragem e frontalidade que lhe permitia dizer “basta de sacrifícios impostos aos mais pobres” ainda nos anos da troika, em nome dos mais frágeis sem que se lhe manchasse nunca uma espécie de doçura que justificava de quem não o conhecia esta pergunta: quem é este homem? Este Pastor que se confunde como mais um no meio do rebanho e aparenta conhecer de cor o nome das “ovelhas”?
Foi essa a pergunta que fiz aos seus diocesanos de Aveiro já a meio da sua estadia por essa diocese quando o vi pela primeira vez no final de uma actividade promovida pelas jovens diocesanas. Percebi depois porque a saída de D. António, alguns anos mais tarde, pareceu deixá-los numa espécie de orfandade, que nada tinha a ver com o perfil do seu sucessor.
Talvez a liderança das Equipas de Nossa Senhora e a presença enquanto director espiritual do movimento dos Cursilhos de Cristandade tivesse contribuído para esse conhecimento apurado dos problemas reais das famílias que o rodeavam e o seguiam de perto, tão perto, que se confundia como uma espécie de pároco de todas as freguesias. Entrando na intimidade de centenas, sobretudo de casais ainda muito jovens, como se fosse apenas mais um membro da família. O laicado daquela diocese mostrava uma vitalidade inusitada.
Vi-o depois um sem-número de vezes. E acabou também por gerar em mim o mesmo sentimento de proximidade. Conhecia-nos em família pelos nomes, perguntava por alegrias e tristezas. A sua modéstia não lhe terá facilitado a entrada na grande diocese do Porto, deixando-lhe transparecer uma certa nostalgia pela experiencia passada.
O facto de Aveiro ser uma diocese nova (o que são 75 anos contra os cinco séculos de vida de dioceses como a do Porto?) terá permitido que se sentisse aí de tal forma em casa que só por obediência terá aceitado a passagem para a liderança da diocese do Porto (ainda por cima sucedendo a uma figura como a de D. Manuel Clemente). Via-se que não fazia carreira eclesiástica e que as honrarias próprias da importância do cargo lhe pesavam mais do que lhe agradavam, como uma roupa que lhe estivesse larga demais para a modéstia das suas ambições.
Não por acaso o novo bispo chegou ao Porto rodeado de aveirenses a quem na sua homilia inicial agradeceu o apoio e pediu orações. Ordenado bispo no dia de São José, via-se como esse santo a quem Deus trocara frequentemente as voltas. Aos sacerdotes falou como “irmãos”. Citando Santo Agostinho, comunicou-lhes que queria “ ser bispo para vós e irmão convosco”, fazendo lembrar a chegada ao papado do outro Francisco em cujos gestos e acções se revia por inteiro e quase antecipava.
Um ano depois, no balanço desses primeiros 365 dias numa notável entrevista à Renascença, feita pelo jornalista Henrique Cunha, ergueu a sua voz em nome dos pobres. “Basta”, afirmou, defendendo: “Precisamos de uma forma de ser líder e ser protagonista, de ser governante e de ser responsável deste país”. Uma nova forma que passava, em seu entender, por “dizer a verdade aos cidadãos”. Vale a pena reler o texto integral.
Nesse Fevereiro de 2015, a oito meses das eleições legislativas, acrescentava: “É tempo de dizermos que há caminhos novos a percorrer. O esforço tem de ter o seu resultado e o trabalho que se realizou até aqui tem agora de criar patamares novos de desenvolvimento da economia e da justiça social de equidade entre todos para que as provações e as dificuldades não pesem sobre aqueles que menos têm.”
Não foi apenas algum Porto que não entendeu todo o significado das suas palavras, foi também boa parte do país. A incomodidade com o novo bispo cresceu um pouco em vários sectores da vida político-social. Tínhamos de novo um bispo do Porto a afirmar preto no branco que o futuro não se “faz só com grupos, só com partidos, só com determinadas pessoas”.
Na sua última entrevista à Renascença, dada a 14 de Julho ao Miguel Coelho, ouvimo-lo mais uma vez falar do Porto já como a sua cidade que não se pode “resumir a monumentos, é alma, vida e gente”. Mas nada de vozes do Restelo. Sem saudosismos, falou de um Porto desertificado muito antes da invasão de turistas, almas bem-vindas (“também quem nos visita é gente!”) para dar vida à nova cidade, desde que esta não perca as suas gentes que sabem acolher como ninguém.
Homem de fazer pontes e promover encontros não deixou de envolver todos incluindo as outras confissões religiosas num mesmo diálogo. Preocupado com a cidade, abriu as portas da Igreja aos não crentes, fazendo-a participar na vida comum e enriquecendo o património turístico, quer com a enorme reabilitação dos Clérigos, quer com a abertura da sua própria casa (o frio, mas lindíssimo Paço Episcopal), uma pequena maravilha até aqui escondida dos olhos dos portuenses e estrangeiro.
Homem prático arranjou também com isso novas receitas para uma Igreja depauperada.
Ganhou o respeito de empresários e comerciantes e nem os militares ficaram de fora desse espirito de proximidade e cooperação. O Porto voltou a perder um D. António que marcará de novo a cidade enquanto bispo. Ambos tão perto da doutrina que Francisco nos pede, ansiosamente, para adoptar. Partiu inesperadamente este homem bom que adoptou como divisa episcopal “nas tuas mãos”. Hoje, subitamente, cumpriu-se a divisa.
[Graça Franco, Renascença]